quinta-feira, 24 de abril de 2025

A revogação de certame licitatório só pode ocorrer diante de fatos supervenientes que demonstrem que a contratação pretendida tenha se tornado inconveniente e inoportuna ao interesse público.

 

A revogação de certame licitatório só pode ocorrer diante de fatos supervenientes que demonstrem que a contratação pretendida tenha se tornado inconveniente e inoportuna ao interesse público. Ao constatar que a motivação da revogação foi genérica e incapaz de demonstrar sua real necessidade, pode o TCU determinar ao jurisdicionado que anule o ato revogatório, a fim de permitir a continuidade da licitação.

Representação formulada ao TCU apontou supostas inconformidades nos Pregões Eletrônicos (PE) 90840/2024 e 90057/2025, conduzidos pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) com vistas à “aquisição de plataforma de integração de aplicações”. O primeiro certame contara com a participação de cinco licitantes, tendo a empresa vencedora oferecido o melhor lance; considerando que a empresa atendera aos requisitos documentais, o Serpro a convocou para realização de prova de conceito e concluiu que houvera o cumprimento integral das exigências técnicas. No entanto, ao analisar recurso administrativo interposto por licitante e as contrarrazões apresentadas pela vencedora, a estatal “alterou o seu posicionamento e inabilitou esta última”, revogando o pregão, sob o argumento de que seriam necessários ajustes no edital. Posteriormente, fora publicado o PE 90057/2025, com o mesmo objeto da licitação anterior. A representante alegara, em síntese: a) falhas na condução da prova de conceito do PE 90840/2024, por ter sido realizada de forma “confusa e inadequada”, além de haver sido desconsiderado que a vencedora deixara de cumprir diversos requisitos; b) inabilitação da vencedora apenas na fase recursal, a indicar “possível conivência anterior por parte da equipe técnica responsável pelo certame”; c) revogação da licitação sem motivação idônea; d) publicação do edital do PE 90057/2025 contendo requisitos semelhantes aos do pregão anterior, a sugerir “possível favorecimento” à empresa vencedora, pois lhe permitiria “ajustar o seu produto para participar novamente do processo competitivo”. Em resposta à oitiva prévia realizada, o Serpro refutou as alegações da autora da representação, defendeu a adequação das decisões proferidas naqueles certames e enfatizou a importância da contratação. Nada obstante, informou que havia suspendido a última licitação, sem previsão de data para retomada. Em sua instrução, a unidade técnica propôs considerar improcedentes as alegações da representante e arquivar o processo. Em seu voto, o relator, por um lado, concordou com a unidade instrutiva no sentido de que não havia evidências capazes de comprovar a ocorrência de falhas graves na realização da prova de conceito da vencedora, sobretudo ao se levar em conta que a empresa “veio a ser inabilitada na fase recursal do PE 90840/2024 em razão de desatendimento ao requisito técnico constante do subitem 2.1.2.6.5 do correspondente instrumento convocatório, conforme explicado pelo Serpro (grifos do relator): “O item 2.1.2.6.5 exige que a solução possua uma interface WEB centralizada para consulta de, no mínimo, logs, erros, alertas, tracing e acessos, referentes aos componentes da plataforma. Durante a avaliação, constatou-se que a solução da empresa atende plenamente a todos esses requisitos, com exceção da centralização da interface. Embora os dados de logs, erros, alertas e acessos estejam disponíveis em uma única interface WEB, os dados de tracing são acessados por meio de uma interface separada. Dessa forma, o requisito específico de centralização não foi plenamente atendido, pois exige o uso de mais de uma interface para acesso às informações”. Por outro lado, o relator assinalou que, após detida análise do conjunto probatório, divergia do posicionamento da unidade técnica quanto à comparação entre os editais dos certames e, também, em relação à motivação invocada para a revogação do PE 90840/2024. Nesse ponto, destacou que a empresa estatal motivara o ato de revogação nos seguintes termos: “Senhores Representantes, desta forma para garantir que os requisitos do edital estejam alinhados às necessidades técnicas e negócio do Serpro, a Área Técnica do Serpro solicitou a REVOGAÇÃO do Pregão para ajustes. Esta medida assegurará a transparência e a clareza no processo de contratação, eliminando dúvidas e evitando futuros questionamentos e buscando a proposta mais vantajosa que atenda às necessidades do Serpro” (grifos do relator). Ele retrucou que as nove modificações promovidas no edital do PE 90057/2025 consistiriam, na verdade, em “meros ajustes de redação, sem alterações das características do objeto e da essência dos requisitos a serem observados pelos participantes”, o que inclusive teria sido reconhecido pela própria estatal em sua resposta à oitiva, destacada a seguir (grifos do relator): “Portanto, os ajustes promovidos foram apenas de redação, sem alterar o conteúdo dos requisitos, mas sim para tornar mais claros os aspectos técnicos desejados pelo SERPRO. Essas modificações foram elaboradas para adequar os requisitos às práticas e necessidades do SERPRO e incentivar a participação do maior número possível de empresas no pregão eletrônico, sem comprometer a competitividade ou a isonomia do certame. [...] A revogação do Pregão Eletrônico nº 90840/2024 decorreu da identificação de ajustes necessários em alguns dos requisitos técnicos originalmente estabelecidos no edital. Inicialmente, verificou-se um erro material crítico no item 2.1.2.1, que exigia a utilização do sistema operacional CentOS. Este sistema operacional foi oficialmente descontinuado pela RedHat, conforme informado no site [omissis]. Tal fato tornou inviável homologar o requisito mencionado, uma vez que este perdeu seu objetivo e nenhuma empresa poderia atender ao requisito. Diante deste contexto tornou-se necessária a adequação para viabilizar o atendimento ao requisito e possibilitar a participação do maior número de licitantes, visando a contratação do objeto de acordo com as necessidades do Serpro (p. 43). Outro ponto relevante que justificou a revogação foi a alocação do requisito relacionado à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) entre os requisitos não funcionais, de forma que gerou interpretações conflitantes, especialmente por já existir cláusula específica tratando dessa temática (Cláusula Décima Terceira do Anexo III – minuta do contrato). Para assegurar uma interpretação clara conforme o artigo 33 da Lei nº 13.303/2026, evitar questionamentos futuros, conferir a necessária segurança jurídica ao processo, tornou-se imprescindível realocar corretamente o requisito exclusivamente na referida cláusula contratual. Ademais, foi identificada a necessidade de ajustes pontuais em certas palavras na redação de alguns requisitos, de modo a torná-los mais claros para o mercado, sem alterar a essência das obrigações técnicas estabelecidas”. Sob a ótica do relator, a exclusão da referência ao sistema operacional CentOS não representara alteração relevante, pois a redação original do primeiro edital previra que a plataforma ofertada na solução do licitante deve permitir a instalação diretamente em sistema operacional Red Hat Linux e CentOS (nas versões suportadas pelos fabricantes), virtualizado ou não, em ambiente on-premise no SERPRO (grifos do relator). Ele ressaltou que, “como o CentOS já havia sido oficialmente descontinuado (incluído no edital por mero equívoco), inexistia versão suportada pelo seu fabricante. Em função dessa ‘perda parcial de objeto’, o requisito poderia ser satisfeito mediante a comprovação de que a plataforma permitia a instalação diretamente no sistema operacional Red Hat Linux”, exatamente o que fora feito na prova de conceito da vencedora. E arrematou: “Prova disso é que, apesar de não ter demonstrado a utilização da plataforma no primeiro sistema operacional, o fez no segundo, tendo o Serpro considerado a condição atendida, mesmo após a reanálise efetuada na fase recursal, posicionamento ratificado em sua resposta à oitiva prévia” (grifos do relator). Dito isso, salientou que, nesse contexto, permanecia para ele a seguinte dúvida: caso a empresa “tivesse atendido ao requisito da web centralizada (único considerado descumprido), o Serpro a teria declarado vencedora ou revogado o certame para ajustes redacionais no edital?”. Acrescentou também não haver nos autos nenhum registro de impugnação ou de pedido de esclarecimento relacionado ao CentOS entre a data de publicação do edital e a de apresentação das propostas pelos licitantes, sequer havia evidências de potenciais interessados que teriam deixado de participar do primeiro pregão em razão da menção a esse sistema operacional, a reforçar o seu entendimento de que o ajuste de redação não implicara modificação substancial do certame. Quanto à exigência relacionada à LGPD, frisou que a previsão de sua verificação na prova de conceito fora excluída do segundo edital apenas pelo fato de a estatal considerar que “o conteúdo relacionado à privacidade de dados pessoais já está contemplado em um documento mais abrangente (minuta do contrato, anexo III do edital) e não precisava figurar como requisito não funcional no Anexo I” (grifos do relator), o que significaria dizer, em termos práticos, que o vencedor da nova licitação continuaria a ter que atender às mesmas exigências durante a execução contratual. Nesse cenário, concluiu que a justificativa que embasou a revogação fora genérica e não comprovava, “de forma clara e fundamentada, que os ajustes meramente redacionais seriam capazes de ampliar significativamente a competitividade do certame, atraindo outros potenciais interessados que teriam sido impedidos de participar da licitação anterior em razão das exigências originais” (grifos do relator). Na sequência, pontuou que a jurisprudência do TCU, a exemplo do Acórdão 364/2022-Plenário, acena no sentido de que a publicação de revogação de licitação promovida por empresa estatal, sem explicitação do fato superveniente que teria tornado o procedimento inconveniente ou inoportuno, representa ofensa ao art. 31 da Lei 13.303/2016 e aos princípios da transparência e da ampla defesa. Nesse mesmo sentido, julgou oportuno transcrever o seguinte trecho do voto condutor do Acórdão 3066/2020-Plenário: “22. No que tange à informação prestada pela Fiocruz de que pretende revogar o certame ora em apreciação, permito-me observar que a revogação de processo licitatório é condicionada à ocorrência de fato superveniente, devidamente comprovado, que justifique tal medida. 23. O art. 49 da Lei 8.666/1993, também aplicável aos certames fundamentados no RDC, dispõe que ‘a autoridade competente para aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado...’. Em primeira análise, o mero aprimoramento do edital para que se obtenha um suposto aumento da competitividade não parece ser uma motivação satisfatória, já que o processo licitatório em análise resultou na participação de cinco licitantes e foi aparentemente competitivo. 24. Assim, além das propostas consignadas pela unidade técnica, cabe alertar a Fundação Oswaldo Cruz de que a revogação de certame licitatório, nos termos do art. 49 da Lei 8.666/1993 (aplicável ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas), só pode ocorrer diante de fatos supervenientes que demonstrem que a contratação pretendida tenha se tornada inconveniente e inoportuna ao interesse público” (grifos do relator). Trouxe ainda a informação de que, por meio do aludido acórdão, o TCU determinara a anulação da inabilitação indevida de licitante, e que, no caso sob exame, também teria havido a participação de cinco interessadas em ambiente competitivo de lances, a enfraquecer assim o argumento do Serpro, desacompanhado de evidências, de que a revogação do primeiro certame servira para ampliar a competitividade. Ademais, reproduziu em seu voto dois outros excertos de jurisprudência que possuiriam correlação com a situação analisada (grifos do relator): a) “a teoria dos motivos determinantes conduz à conclusão de que a validade do ato administrativo está vinculada à veracidade e à suficiência dos motivos que o fundamentam, de tal modo que, se inexistentes ou falsos, implicam a sua nulidade” (enunciado extraído do Acórdão 1147/2010-Plenário); b) “o TCU pode determinar medidas corretivas a ato praticado na esfera de discricionariedade das agências reguladoras, desde que viciado em seus requisitos, a exemplo da inexistência do motivo determinante e declarado; em tais hipóteses, se a irregularidade for grave, pode até mesmo determinar a anulação do ato” (enunciado extraído do Acórdão 435/2020-Plenário). Após enfatizar que a motivação da revogação fora genérica e incapaz de demonstrar sua real necessidade, mormente quando se constatava que o pregão posterior mantivera as mesmas características do objeto e, em essência, os mesmos requisitos dos licitantes previstos na primeira licitação, o relator propôs, e o colegiado decidiu, fixar prazo ao Serpro para que “anule o ato de revogação do Pregão Eletrônico 90840/2024 e todo o Pregão Eletrônico 90057/2025, a fim de permitir a continuidade do primeiro certame, por meio do chamamento da segunda colocada, em observância ao art. 31 da Lei 13.303/2016, aos princípios da competitividade e da isonomia, à teoria dos motivos determinantes e à reiterada jurisprudência desta Corte de Contas, consubstanciada nos Acórdãos 1.147/2010, 435/2020, 3.066/2020 e 364/2022, todos do Plenário”.

Acórdão 2251/2025 Primeira Câmara, Representação, Relator Ministro Jhonatan de Jesus.