A revogação de certame licitatório
só pode ocorrer diante de fatos supervenientes que demonstrem que a
contratação pretendida tenha se tornado inconveniente e inoportuna ao
interesse público. Ao constatar que a motivação da revogação foi genérica e
incapaz de demonstrar sua real necessidade, pode o TCU determinar ao
jurisdicionado que anule o ato revogatório, a fim de permitir a continuidade
da licitação.
Representação
formulada ao TCU apontou supostas inconformidades nos Pregões Eletrônicos (PE)
90840/2024 e 90057/2025, conduzidos pelo Serviço Federal de Processamento de
Dados (Serpro) com vistas à “aquisição de
plataforma de integração de aplicações”. O primeiro certame contara com a
participação de cinco licitantes, tendo a empresa vencedora oferecido o melhor
lance; considerando que a empresa atendera aos requisitos documentais, o Serpro
a convocou para realização de prova de conceito e concluiu que houvera o
cumprimento integral das exigências técnicas. No entanto, ao analisar recurso
administrativo interposto por licitante e as contrarrazões apresentadas pela
vencedora, a estatal “alterou o seu
posicionamento e inabilitou esta última”, revogando o pregão, sob o
argumento de que seriam necessários ajustes no edital. Posteriormente, fora
publicado o PE 90057/2025, com o mesmo objeto da licitação anterior. A
representante alegara, em síntese: a) falhas na condução da prova de conceito
do PE 90840/2024, por ter sido realizada de forma “confusa e inadequada”, além de haver sido desconsiderado que a
vencedora deixara de cumprir diversos requisitos; b) inabilitação da vencedora
apenas na fase recursal, a indicar “possível
conivência anterior por parte da equipe
técnica responsável pelo certame”; c) revogação da licitação sem motivação
idônea; d) publicação do edital do PE 90057/2025 contendo requisitos
semelhantes aos do pregão anterior, a sugerir “possível favorecimento” à empresa vencedora, pois lhe permitiria “ajustar o seu produto para participar
novamente do processo competitivo”. Em resposta à oitiva prévia realizada,
o Serpro refutou as alegações da autora da representação, defendeu a adequação
das decisões proferidas naqueles certames e enfatizou a importância da
contratação. Nada obstante, informou que havia suspendido a última licitação,
sem previsão de data para retomada. Em sua instrução, a unidade técnica propôs
considerar improcedentes as alegações da representante e arquivar o processo.
Em seu voto, o relator, por um lado, concordou com a unidade instrutiva no
sentido de que não havia evidências capazes de comprovar a ocorrência de falhas
graves na realização da prova de conceito da vencedora, sobretudo ao se levar
em conta que a empresa “veio a ser
inabilitada” na fase recursal do PE
90840/2024 em razão de desatendimento ao requisito técnico constante do subitem
2.1.2.6.5 do correspondente instrumento convocatório, conforme explicado pelo
Serpro (grifos do relator): “O item
2.1.2.6.5 exige que a solução possua uma interface WEB centralizada para consulta de, no mínimo, logs,
erros, alertas, tracing e acessos, referentes aos componentes da plataforma.
Durante a avaliação, constatou-se que a solução da empresa atende plenamente a todos esses requisitos,
com exceção da centralização da interface. Embora os dados de logs, erros,
alertas e acessos estejam disponíveis em uma única interface WEB, os dados
de tracing são acessados por meio de uma interface separada. Dessa forma, o
requisito específico de centralização não
foi plenamente atendido, pois exige o uso de mais de uma interface para
acesso às informações”. Por outro lado, o relator assinalou que, após
detida análise do conjunto probatório, divergia do posicionamento da unidade
técnica quanto à comparação entre os editais dos certames e, também, em relação
à motivação invocada para a revogação do PE 90840/2024. Nesse ponto, destacou
que a empresa estatal motivara o ato de revogação nos seguintes termos: “Senhores Representantes, desta forma para
garantir que os requisitos do edital estejam alinhados às necessidades técnicas
e negócio do Serpro, a Área Técnica do Serpro solicitou a REVOGAÇÃO do
Pregão para ajustes. Esta medida assegurará a transparência e a clareza no
processo de contratação, eliminando dúvidas e evitando futuros questionamentos
e buscando a proposta mais vantajosa que atenda às necessidades do Serpro”
(grifos do relator). Ele retrucou que as nove modificações promovidas no edital
do PE 90057/2025 consistiriam, na verdade, em “meros ajustes de redação, sem alterações das características do objeto
e da essência dos requisitos a serem observados pelos participantes”, o que
inclusive teria sido reconhecido pela própria estatal em sua resposta à oitiva,
destacada a seguir (grifos do relator): “Portanto,
os ajustes promovidos foram apenas de
redação, sem alterar o conteúdo dos requisitos, mas sim para tornar
mais claros os aspectos técnicos desejados pelo SERPRO. Essas modificações
foram elaboradas para adequar os requisitos às práticas e necessidades do
SERPRO e incentivar a participação do maior número possível de empresas no
pregão eletrônico, sem comprometer a competitividade ou a isonomia do certame.
[...] A revogação do Pregão Eletrônico nº 90840/2024 decorreu da identificação
de ajustes necessários em alguns dos requisitos técnicos originalmente
estabelecidos no edital. Inicialmente, verificou-se um erro material
crítico no item 2.1.2.1, que exigia a utilização do sistema operacional CentOS. Este sistema operacional foi
oficialmente descontinuado pela RedHat, conforme informado no site [omissis]. Tal fato tornou inviável homologar o requisito mencionado, uma vez
que este perdeu seu objetivo e nenhuma empresa poderia atender ao requisito.
Diante deste contexto tornou-se necessária a adequação para viabilizar o
atendimento ao requisito e possibilitar a participação do maior número de
licitantes, visando a contratação do objeto de acordo com as necessidades do
Serpro (p. 43). Outro ponto relevante que justificou a revogação foi a alocação
do requisito relacionado à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) entre os
requisitos não funcionais, de forma que gerou interpretações conflitantes,
especialmente por já existir cláusula
específica tratando dessa temática (Cláusula Décima Terceira do Anexo III –
minuta do contrato). Para assegurar uma interpretação clara conforme o
artigo 33 da Lei nº 13.303/2026, evitar questionamentos futuros, conferir a
necessária segurança jurídica ao processo, tornou-se imprescindível realocar
corretamente o requisito exclusivamente na referida cláusula contratual.
Ademais, foi identificada a necessidade de ajustes
pontuais em certas palavras na redação de alguns requisitos, de modo
a torná-los mais claros para o mercado, sem
alterar a essência das obrigações técnicas estabelecidas”. Sob a
ótica do relator, a exclusão da referência ao sistema operacional CentOS não
representara alteração relevante, pois a redação original do primeiro edital
previra que a plataforma ofertada na
solução do licitante “deve permitir a instalação diretamente em
sistema operacional Red Hat Linux e CentOS (nas versões suportadas pelos fabricantes), virtualizado ou não, em
ambiente on-premise no SERPRO” (grifos
do relator). Ele ressaltou que, “como o
CentOS já havia sido oficialmente descontinuado (incluído no edital por mero
equívoco), inexistia versão suportada pelo seu fabricante. Em função dessa
‘perda parcial de objeto’, o requisito poderia ser satisfeito mediante a
comprovação de que a plataforma permitia a instalação diretamente no sistema
operacional Red Hat Linux”, exatamente o que fora feito na prova de
conceito da vencedora. E arrematou: “Prova
disso é que, apesar de não ter demonstrado a utilização da plataforma no
primeiro sistema operacional, o fez no segundo, tendo o Serpro considerado a
condição atendida, mesmo após a reanálise efetuada na fase recursal,
posicionamento ratificado em sua resposta à oitiva prévia” (grifos do
relator). Dito isso, salientou que, nesse contexto, permanecia para ele a
seguinte dúvida: caso a empresa “tivesse
atendido ao requisito da web centralizada (único considerado descumprido), o
Serpro a teria declarado vencedora ou revogado o certame para ajustes
redacionais no edital?”. Acrescentou também não haver nos autos nenhum
registro de impugnação ou de pedido de esclarecimento relacionado ao CentOS
entre a data de publicação do edital e a de apresentação das propostas pelos
licitantes, sequer havia evidências de potenciais interessados que teriam
deixado de participar do primeiro pregão em razão da menção a esse sistema
operacional, a reforçar o seu entendimento de que o ajuste de redação não
implicara modificação substancial do certame. Quanto à exigência relacionada à
LGPD, frisou que a previsão de sua verificação na prova de conceito fora
excluída do segundo edital apenas pelo fato de a estatal considerar que “o conteúdo relacionado à privacidade de
dados pessoais já está contemplado em um documento mais abrangente
(minuta do contrato, anexo III do edital) e não precisava figurar como
requisito não funcional no Anexo I” (grifos do relator), o que significaria
dizer, em termos práticos, que o vencedor da nova licitação continuaria a ter
que atender às mesmas exigências durante a execução contratual. Nesse cenário,
concluiu que a justificativa que embasou a revogação fora genérica e não
comprovava, “de forma clara e
fundamentada, que os ajustes meramente
redacionais seriam capazes de ampliar significativamente a competitividade
do certame, atraindo outros potenciais interessados que teriam sido impedidos
de participar da licitação anterior em razão das exigências originais”
(grifos do relator). Na sequência, pontuou que a jurisprudência do TCU, a
exemplo do Acórdão
364/2022-Plenário, acena no sentido
de que a publicação de revogação de licitação promovida por empresa estatal,
sem explicitação do fato superveniente que teria tornado o procedimento
inconveniente ou inoportuno, representa ofensa ao art. 31 da Lei 13.303/2016 e
aos princípios da transparência e da ampla defesa. Nesse mesmo sentido, julgou
oportuno transcrever o seguinte trecho do voto condutor do Acórdão
3066/2020-Plenário: “22. No que tange à informação prestada pela
Fiocruz de que pretende revogar o certame ora em apreciação, permito-me
observar que a revogação de processo
licitatório é condicionada à ocorrência de fato superveniente, devidamente
comprovado, que justifique tal medida. 23. O art. 49 da Lei 8.666/1993,
também aplicável aos certames fundamentados no RDC, dispõe que ‘a autoridade
competente para aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação
por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente
comprovado...’. Em primeira análise, o
mero aprimoramento do edital para que se obtenha um suposto aumento da
competitividade não parece ser uma motivação satisfatória, já que o processo
licitatório em análise resultou na participação de cinco licitantes e foi
aparentemente competitivo. 24. Assim, além das propostas consignadas pela
unidade técnica, cabe alertar a Fundação Oswaldo Cruz de que a revogação de certame licitatório, nos
termos do art. 49 da Lei 8.666/1993 (aplicável ao Regime Diferenciado de
Contratações Públicas), só pode ocorrer
diante de fatos supervenientes que demonstrem que a contratação pretendida
tenha se tornada inconveniente e inoportuna ao interesse público”
(grifos do relator). Trouxe ainda a informação de que, por meio do aludido
acórdão, o TCU determinara a anulação da inabilitação indevida de licitante, e
que, no caso sob exame, também teria havido a participação de cinco
interessadas em ambiente competitivo de lances, a enfraquecer assim o argumento
do Serpro, desacompanhado de evidências, de que a revogação do primeiro certame
servira para ampliar a competitividade. Ademais, reproduziu em seu voto dois
outros excertos de jurisprudência que possuiriam correlação com a situação
analisada (grifos do relator): a) “a
teoria dos motivos determinantes conduz à conclusão de que a validade do ato
administrativo está vinculada à veracidade
e à suficiência dos motivos que o
fundamentam, de tal modo que, se inexistentes ou falsos, implicam a sua
nulidade” (enunciado extraído do Acórdão
1147/2010-Plenário); b) “o TCU pode determinar medidas corretivas a
ato praticado na esfera de discricionariedade das agências reguladoras, desde
que viciado em seus requisitos, a exemplo da inexistência do motivo
determinante e declarado; em tais hipóteses, se a irregularidade for
grave, pode até mesmo determinar a anulação
do ato” (enunciado extraído do Acórdão
435/2020-Plenário). Após enfatizar
que a motivação da revogação fora genérica e incapaz de demonstrar sua real
necessidade, mormente quando se constatava que o pregão posterior mantivera as
mesmas características do objeto e, em essência, os mesmos requisitos dos
licitantes previstos na primeira licitação, o relator propôs, e o colegiado
decidiu, fixar prazo ao Serpro para que “anule
o ato de revogação do Pregão Eletrônico 90840/2024 e todo o Pregão Eletrônico
90057/2025, a fim de permitir a continuidade do primeiro certame, por meio do
chamamento da segunda colocada, em observância ao art. 31 da Lei 13.303/2016,
aos princípios da competitividade e da isonomia, à teoria dos motivos
determinantes e à reiterada jurisprudência desta Corte de Contas,
consubstanciada nos Acórdãos 1.147/2010, 435/2020, 3.066/2020 e 364/2022, todos
do Plenário”.
Acórdão
2251/2025 Primeira Câmara, Representação, Relator Ministro Jhonatan de Jesus.