O critério de desempate por
localidade (art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021) não se aplica a
licitações realizadas no âmbito da Administração Pública Federal, por ausência
de expressa previsão legal. A preferência por empresas estabelecidas no
território do promotor do certame é restrita às licitações realizadas por
órgãos e entidades dos entes subnacionais.
Representação
formulada por sociedade empresária apontou possíveis irregularidades ocorridas
no Pregão Eletrônico 90.056/2024, sob a responsabilidade do Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS), e no Pregão Eletrônico 90.003/2024, sob a
responsabilidade do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (Conter), cujos
objetos são “a prestação de serviços de agenciamento de viagens,
compreendendo emissão, remarcação/alteração, cancelamento e reembolso de
bilhetes de passagens aéreas nacionais e internacionais e serviços correlatos”.
Em síntese, a discussão tratada nos autos versou sobre a aplicação do critério
de desempate previsto no art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021 a órgãos e
entidades da Administração Pública Federal. A representante alegou que a
aplicação desse critério nos pregões eletrônicos em questão favorecera
indevidamente empresas estabelecidas no Distrito Federal. Alegou, ainda, que o
Portal de Compras do Governo Federal estaria parametrizado para aplicar
automaticamente o critério de desempate por territorialidade, afetando
indevidamente os processos licitatórios de entidades vinculadas à Administração
Pública Federal. Por se tratar de indício de irregularidade envolvendo o Portal
de Compras do Governo Federal, promoveu-se a oitiva da Secretaria de Gestão e
Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos
(Seges/MGI). Em resposta, a unidade jurisdicionada argumentou que, em que pese
o art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021 não fazer menção a órgãos e
entidades da Administração Pública Federal, o critério de desempate lá previsto
“também seria aplicável às licitações realizadas por essas instituições,
tendo em vista o princípio do desenvolvimento nacional sustentável com ênfase
no desenvolvimento local”, acrescentando que, “na época da publicação da
Instrução Normativa 73/2022 e do desenvolvimento do sistema Compras.gov.br,
como alguns dos critérios de desempate previstos no art. 60 da Lei 14.133/2021
careciam de regulamentação, foi conferida interpretação ampla ao dispositivo”.
A unidade técnica encarregada da instrução rejeitou esses argumentos, opinou
pela procedência parcial da representação e sugeriu determinação à Seges/MGI
para que ajuste o mencionado portal, de modo que o disposto no art. 60, § 1º,
inciso I, da Lei 14.133/2021 não seja aplicado em certames licitatórios
realizados por órgãos ou entidades federais. Em seu voto, o relator, de início,
disse manifestar-se de acordo com a proposta formulada pela unidade técnica e,
a fim de contextualizar a situação posta nos autos, informou que os estudos
técnicos preliminares das duas licitações eram semelhantes e compostos
basicamente pelos seguintes itens: “i) serviço de emissão de passagens
aéreas (nacionais e internacionais); ii) serviço de alteração e de cancelamento
de bilhetes de passagem; e iii) reembolso dos custos dos bilhetes e do
seguro-viagem (valor da passagem aérea propriamente dita)”, sendo que esse
terceiro item, segundo constava dos editais, fazia parte da estimativa de
custos, mas não fora objeto de oferta. Isto é, “a disputa (menor preço)
acontece em relação aos serviços efetivamente prestados pela contratada com a
emissão, alteração e cancelamento dos bilhetes”. Na sequência, o relatou
observou que, em ambos os certames, diversas empresas ofereceram o mesmo preço
mínimo permitido pelo sistema “comprasnet.gov” para os serviços de emissão,
alteração e cancelamento de bilhetes (R$ 0,0001), sendo que no Pregão
Eletrônico 90.003/2024 mais de quarenta empresas ficaram empatadas. Depois,
reproduziu o inteiro teor do art. 60 da Lei 14.133/2021, in verbis: “Art.
60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os
seguintes critérios de desempate, nesta ordem: I - disputa final, hipótese em
que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à
classificação; II - avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes,
para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para
efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei; III -
desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no
ambiente de trabalho, conforme regulamento; IV - desenvolvimento pelo licitante
de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle. § 1º
Em igualdade de condições, se não houver desempate, será assegurada
preferência, sucessivamente, aos bens e serviços produzidos ou prestados por: I
- empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do
órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou,
no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no
território do Estado em que este se localize; II - empresas brasileiras; III -
empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País;
IV - empresas que comprovem a prática de mitigação, nos termos da Lei nº
12.187, de 29 de dezembro de 2009. § 2º As regras previstas no caput deste artigo
não prejudicarão a aplicação do disposto no art. 44 da Lei Complementar nº 123,
de 14 de dezembro de 2006”. Voltando a atenção para o caso concreto, o
relator disse que, pelos elementos dos autos, o empate persistira após a
aplicação do caput do art. 60 da Lei 14.133/2021 e lembrou que parte dos
incisos desse artigo ainda estavam pendentes de regulamentação. Dito isso,
asseverou que “antes da realização do sorteio previsto na Instrução
Normativa 79, de 12 de setembro de 2024, o Portal de Compras do Governo Federal
estava – e ainda está – programado para selecionar apenas empresas
estabelecidas no estado do órgão ou da entidade contratante, ainda que federal”.
Nesse ponto, o relator trouxe considerações a respeito do dilema vivido pela
contratação pública no país entre a rigorosa observância das normas e a
legítima aspiração por promover o desenvolvimento socioeconômico. Ele defendeu
que a convivência entre o princípio da legalidade e a busca pelo
desenvolvimento local é fundamental, pois ambos os conceitos devem se
complementar para que as licitações se tornem eficazes ferramentas de política
pública. Registrou que o princípio da legalidade, pilar do Direito
Administrativo, “garante que a atuação da administração pública esteja
adstrita ao que a lei expressamente permite ou determina, assegurando a
segurança jurídica, a transparência e, sobretudo, a isonomia entre os
licitantes”, não havendo “espaço para interpretações que, sob o pretexto
de buscar um fim maior, desconsiderem os limites impostos pelo texto legal”.
Por sua vez, prosseguiu, a Nova Lei de Licitações e Contratos tem como objetivo
claro o desenvolvimento nacional sustentável, com foco no crescimento local.
Nesse contexto, a licitação “transcende a mera aquisição de bens e serviços,
configurando-se como uma ferramenta estratégica para estimular a economia
regional, gerar empregos, fortalecer cadeias produtivas e impulsionar o
empreendedorismo local” e quando a lei estabelece mecanismos como o
critério de desempate para empresas da região onde o certame for realizado, ela
tem a intenção de promover os benefícios do desenvolvimento local. O relator
aferiu que o ponto de equilíbrio entre o princípio da legalidade e a promoção
do desenvolvimento reside na interpretação teleológica e sistemática da lei,
desde que rigorosamente observados os seus limites expressos. Ele sustentou que
a “legislação deve prever mecanismos que favoreçam o desenvolvimento local,
seja por meio de preferências ou outros incentivos, mas sempre de forma clara e
específica”. Assim, os benefícios sociais e econômicos poderiam ser
alcançados sem prejudicar a segurança jurídica e a igualdade de oportunidades.
E concluiu que, embora a intenção de promover o desenvolvimento local seja
louvável e esteja de acordo com os objetivos da nova Lei de Licitações e
Contratos, a aplicação do seu art. 60, § 1º, inciso I pela Administração
Pública Federal esbarra em um obstáculo insuperável, qual seja, a falta de uma
previsão legal expressa. O mencionado dispositivo, segundo o relator, “é taxativo
ao delimitar a preferência para empresas locais às licitações realizadas por
órgãos ou entidades da Administração Pública estadual, distrital ou, no caso de
municípios, localizadas no território do estado correspondente”, tendo sido
essa, inclusive, a razão determinante para o INSS revogar o Pregão Eletrônico
90.056/2024. Assim, pedindo vênias à Seges/MGI, o relator argumentou que “a
ausência de menção à esfera federal no texto legal não configura uma lacuna a
ser preenchida por interpretação extensiva ou analógica”, ao contrário, “representa
uma delimitação intencional do legislador”, sendo que o critério de
preferência local se alinha aos interesses dos entes subnacionais, que buscam
fortalecer suas economias regionais. No entanto, o relator alertou que aplicar
critério de desempate baseado em localidade, sem previsão legal expressa, a
licitações federais, que possuem abrangência nacional, poderia comprometer a
isonomia entre os licitantes de todo o país e restringir indevidamente a
competitividade dos certames. Dessa forma, diante da ausência de previsão legal
expressa que autorize a aplicação do critério previsto no art. 60, § 1º, inciso
I, da Lei 14.133/2021 para órgãos e entidades da Administração Pública Federal,
o relator concluiu que a utilização desse critério é incompatível com o
princípio da legalidade estrita, ressaltando que, embora a promoção do
desenvolvimento local seja um objetivo relevante e desejável, ela não pode se
sobrepor aos mandamentos da lei, sendo necessário buscar a harmonia entre a
legalidade e o desenvolvimento local dentro dos limites impostos pela
legislação. Passando para o desfecho dos casos em apreciação, o relator afirmou
que o Pregão Eletrônico 90.056/2024 fora revogado e o certame conduzido pelo
Conter resultara na assinatura do Contrato 4/2025, no valor total estimado de
R$ 1.038.504,96, montante que se referia “integralmente à estimativa de
reembolso das despesas incorridas pela contratada na aquisição de voos
domésticos”. Não existindo indícios de prejuízos ao erário, o relator
defendeu que não lhe pareceria proporcional sustar esse contrato, porque o
ponto central das discussões travadas nos autos dizia respeito à aplicação
automática do critério de preferência local em licitações federais. Ao final,
acolhendo as proposições do relator, o Plenário expediu determinação à
Seges/MGI para “que, no prazo de 180 dias, adote providências para ajustar o
Portal de Compras do Governo Federal, de modo a não aplicar o disposto no art.
60, § 1º, I, da Lei 14.133/2021 em certames licitatórios realizados por órgãos
ou entidades federais, para adequação ao próprio comando legal e à
jurisprudência do TCU, a exemplo dos Acórdãos 1.047/2025-Plenário, Ministro-Relator Aroldo Cedraz, 779/2025-Plenário, Ministro-Relator Marcos Bemquerer, e 723/2024-Plenário, Ministro-Relator Vital do Rêgo, informando, no mesmo
prazo, as medidas adotadas”.
Acórdão
1733/2025 Plenário, Representação, Relator Ministro Benjamin Zymler.