quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O critério de desempate por localidade (art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021) não se aplica a licitações realizadas no âmbito da Administração Pública Federal, por ausência de expressa previsão legal. A preferência por empresas estabelecidas no território do promotor do certame é restrita às licitações realizadas por órgãos e entidades dos entes subnacionais.

 

O critério de desempate por localidade (art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021) não se aplica a licitações realizadas no âmbito da Administração Pública Federal, por ausência de expressa previsão legal. A preferência por empresas estabelecidas no território do promotor do certame é restrita às licitações realizadas por órgãos e entidades dos entes subnacionais.

Representação formulada por sociedade empresária apontou possíveis irregularidades ocorridas no Pregão Eletrônico 90.056/2024, sob a responsabilidade do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e no Pregão Eletrônico 90.003/2024, sob a responsabilidade do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (Conter), cujos objetos são “a prestação de serviços de agenciamento de viagens, compreendendo emissão, remarcação/alteração, cancelamento e reembolso de bilhetes de passagens aéreas nacionais e internacionais e serviços correlatos”. Em síntese, a discussão tratada nos autos versou sobre a aplicação do critério de desempate previsto no art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021 a órgãos e entidades da Administração Pública Federal. A representante alegou que a aplicação desse critério nos pregões eletrônicos em questão favorecera indevidamente empresas estabelecidas no Distrito Federal. Alegou, ainda, que o Portal de Compras do Governo Federal estaria parametrizado para aplicar automaticamente o critério de desempate por territorialidade, afetando indevidamente os processos licitatórios de entidades vinculadas à Administração Pública Federal. Por se tratar de indício de irregularidade envolvendo o Portal de Compras do Governo Federal, promoveu-se a oitiva da Secretaria de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (Seges/MGI). Em resposta, a unidade jurisdicionada argumentou que, em que pese o art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021 não fazer menção a órgãos e entidades da Administração Pública Federal, o critério de desempate lá previsto “também seria aplicável às licitações realizadas por essas instituições, tendo em vista o princípio do desenvolvimento nacional sustentável com ênfase no desenvolvimento local”, acrescentando que, “na época da publicação da Instrução Normativa 73/2022 e do desenvolvimento do sistema Compras.gov.br, como alguns dos critérios de desempate previstos no art. 60 da Lei 14.133/2021 careciam de regulamentação, foi conferida interpretação ampla ao dispositivo”. A unidade técnica encarregada da instrução rejeitou esses argumentos, opinou pela procedência parcial da representação e sugeriu determinação à Seges/MGI para que ajuste o mencionado portal, de modo que o disposto no art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021 não seja aplicado em certames licitatórios realizados por órgãos ou entidades federais. Em seu voto, o relator, de início, disse manifestar-se de acordo com a proposta formulada pela unidade técnica e, a fim de contextualizar a situação posta nos autos, informou que os estudos técnicos preliminares das duas licitações eram semelhantes e compostos basicamente pelos seguintes itens: “i) serviço de emissão de passagens aéreas (nacionais e internacionais); ii) serviço de alteração e de cancelamento de bilhetes de passagem; e iii) reembolso dos custos dos bilhetes e do seguro-viagem (valor da passagem aérea propriamente dita)”, sendo que esse terceiro item, segundo constava dos editais, fazia parte da estimativa de custos, mas não fora objeto de oferta. Isto é, “a disputa (menor preço) acontece em relação aos serviços efetivamente prestados pela contratada com a emissão, alteração e cancelamento dos bilhetes”. Na sequência, o relatou observou que, em ambos os certames, diversas empresas ofereceram o mesmo preço mínimo permitido pelo sistema “comprasnet.gov” para os serviços de emissão, alteração e cancelamento de bilhetes (R$ 0,0001), sendo que no Pregão Eletrônico 90.003/2024 mais de quarenta empresas ficaram empatadas. Depois, reproduziu o inteiro teor do art. 60 da Lei 14.133/2021, in verbis: “Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: I - disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação; II - avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei; III - desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento; IV - desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle. § 1º Em igualdade de condições, se não houver desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços produzidos ou prestados por: I - empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou, no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize; II - empresas brasileiras; III - empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País; IV - empresas que comprovem a prática de mitigação, nos termos da Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009. § 2º As regras previstas no caput deste artigo não prejudicarão a aplicação do disposto no art. 44 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006”. Voltando a atenção para o caso concreto, o relator disse que, pelos elementos dos autos, o empate persistira após a aplicação do caput do art. 60 da Lei 14.133/2021 e lembrou que parte dos incisos desse artigo ainda estavam pendentes de regulamentação. Dito isso, asseverou que “antes da realização do sorteio previsto na Instrução Normativa 79, de 12 de setembro de 2024, o Portal de Compras do Governo Federal estava – e ainda está – programado para selecionar apenas empresas estabelecidas no estado do órgão ou da entidade contratante, ainda que federal”. Nesse ponto, o relator trouxe considerações a respeito do dilema vivido pela contratação pública no país entre a rigorosa observância das normas e a legítima aspiração por promover o desenvolvimento socioeconômico. Ele defendeu que a convivência entre o princípio da legalidade e a busca pelo desenvolvimento local é fundamental, pois ambos os conceitos devem se complementar para que as licitações se tornem eficazes ferramentas de política pública. Registrou que o princípio da legalidade, pilar do Direito Administrativo, “garante que a atuação da administração pública esteja adstrita ao que a lei expressamente permite ou determina, assegurando a segurança jurídica, a transparência e, sobretudo, a isonomia entre os licitantes”, não havendo “espaço para interpretações que, sob o pretexto de buscar um fim maior, desconsiderem os limites impostos pelo texto legal”. Por sua vez, prosseguiu, a Nova Lei de Licitações e Contratos tem como objetivo claro o desenvolvimento nacional sustentável, com foco no crescimento local. Nesse contexto, a licitação “transcende a mera aquisição de bens e serviços, configurando-se como uma ferramenta estratégica para estimular a economia regional, gerar empregos, fortalecer cadeias produtivas e impulsionar o empreendedorismo local” e quando a lei estabelece mecanismos como o critério de desempate para empresas da região onde o certame for realizado, ela tem a intenção de promover os benefícios do desenvolvimento local. O relator aferiu que o ponto de equilíbrio entre o princípio da legalidade e a promoção do desenvolvimento reside na interpretação teleológica e sistemática da lei, desde que rigorosamente observados os seus limites expressos. Ele sustentou que a “legislação deve prever mecanismos que favoreçam o desenvolvimento local, seja por meio de preferências ou outros incentivos, mas sempre de forma clara e específica”. Assim, os benefícios sociais e econômicos poderiam ser alcançados sem prejudicar a segurança jurídica e a igualdade de oportunidades. E concluiu que, embora a intenção de promover o desenvolvimento local seja louvável e esteja de acordo com os objetivos da nova Lei de Licitações e Contratos, a aplicação do seu art. 60, § 1º, inciso I pela Administração Pública Federal esbarra em um obstáculo insuperável, qual seja, a falta de uma previsão legal expressa. O mencionado dispositivo, segundo o relator, “é taxativo ao delimitar a preferência para empresas locais às licitações realizadas por órgãos ou entidades da Administração Pública estadual, distrital ou, no caso de municípios, localizadas no território do estado correspondente”, tendo sido essa, inclusive, a razão determinante para o INSS revogar o Pregão Eletrônico 90.056/2024. Assim, pedindo vênias à Seges/MGI, o relator argumentou que “a ausência de menção à esfera federal no texto legal não configura uma lacuna a ser preenchida por interpretação extensiva ou analógica”, ao contrário, “representa uma delimitação intencional do legislador”, sendo que o critério de preferência local se alinha aos interesses dos entes subnacionais, que buscam fortalecer suas economias regionais. No entanto, o relator alertou que aplicar critério de desempate baseado em localidade, sem previsão legal expressa, a licitações federais, que possuem abrangência nacional, poderia comprometer a isonomia entre os licitantes de todo o país e restringir indevidamente a competitividade dos certames. Dessa forma, diante da ausência de previsão legal expressa que autorize a aplicação do critério previsto no art. 60, § 1º, inciso I, da Lei 14.133/2021 para órgãos e entidades da Administração Pública Federal, o relator concluiu que a utilização desse critério é incompatível com o princípio da legalidade estrita, ressaltando que, embora a promoção do desenvolvimento local seja um objetivo relevante e desejável, ela não pode se sobrepor aos mandamentos da lei, sendo necessário buscar a harmonia entre a legalidade e o desenvolvimento local dentro dos limites impostos pela legislação. Passando para o desfecho dos casos em apreciação, o relator afirmou que o Pregão Eletrônico 90.056/2024 fora revogado e o certame conduzido pelo Conter resultara na assinatura do Contrato 4/2025, no valor total estimado de R$ 1.038.504,96, montante que se referia “integralmente à estimativa de reembolso das despesas incorridas pela contratada na aquisição de voos domésticos”. Não existindo indícios de prejuízos ao erário, o relator defendeu que não lhe pareceria proporcional sustar esse contrato, porque o ponto central das discussões travadas nos autos dizia respeito à aplicação automática do critério de preferência local em licitações federais. Ao final, acolhendo as proposições do relator, o Plenário expediu determinação à Seges/MGI para “que, no prazo de 180 dias, adote providências para ajustar o Portal de Compras do Governo Federal, de modo a não aplicar o disposto no art. 60, § 1º, I, da Lei 14.133/2021 em certames licitatórios realizados por órgãos ou entidades federais, para adequação ao próprio comando legal e à jurisprudência do TCU, a exemplo dos Acórdãos 1.047/2025-Plenário, Ministro-Relator Aroldo Cedraz, 779/2025-Plenário, Ministro-Relator Marcos Bemquerer, e 723/2024-Plenário, Ministro-Relator Vital do Rêgo, informando, no mesmo prazo, as medidas adotadas”.

Acórdão 1733/2025 Plenário, Representação, Relator Ministro Benjamin Zymler.