Certidão do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) que indique o não cumprimento do percentual exigido pelo art. 93
da Lei 8.213/1991 não é suficiente, por si só, para a inabilitação de
licitante que declarou cumprir as exigências de reserva de cargos para pessoas
com deficiência e para reabilitados da Previdência Social (art. 63, inciso IV,
da Lei 14.133/2021). Compete à Administração diligenciar a licitante para que
esclareça a situação, por meio da apresentação de justificativas plausíveis
que evidenciem eventual impossibilidade de atendimento aos quantitativos
previstos na lei, em face de admissões e desligamentos, bem como de
dificuldades no preenchimento das cotas, a fim de afastar a inabilitação,
devendo tais aspectos serem fiscalizados, com maior rigor, durante a execução
contratual.
Representação
formulada ao TCU indicou possíveis irregularidades no Pregão Eletrônico
90005/2025, sob a responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde, cujo objeto
era a contratação de serviços de apoio administrativo e operacional para
atender às demandas em Rondônia (Funasa/RO), a serem executados com regime de
dedicação exclusiva de mão de obra. Entre as irregularidades apontadas, ganhou
relevo o fato de a empresa vencedora do “item 2 licitado” não haver
comprovado o cumprimento das cotas legais destinadas a pessoas com deficiência
e aprendizes, previstas, respectivamente, no art. 93 da Lei 8.213/1991 e no
art. 429 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Quanto a esse ponto, a
unidade técnica consignou que, ainda na fase de impugnação ao edital, uma das
licitantes apresentara questionamento ao pregoeiro, o qual entendera bastar a
mera declaração para fins de atendimento à exigência contida no art. 63, inciso
IV, da Lei 14.133/2021, que assim dispõe: “Art. 63. Na fase de habilitação
das licitações serão observadas as seguintes disposições: (...) IV - será
exigida do licitante declaração de que cumpre as exigências de reserva de
cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social,
previstas em lei e em outras normas específicas.”. Mediante interposição de
recurso administrativo no aludido processo licitatório, fora apontado e
comprovado que a licitante habilitada no item 2 estava com cotas de aprendizes
e pessoas com deficiência inferiores ao previsto na legislação, “conforme
certidões emitidas em 23/6/2025”. Em contrarrazões, a empresa vencedora
alegou ter envidado esforços para cumprir as cotas legais mediante a oferta de
vagas, porém sem sucesso. Assim sendo, o recurso administrativo foi rejeitado
pelo pregoeiro e pela autoridade superior, com a consequente manutenção da
habilitação da vencedora. Segundo o autor da representação, uma vez questionada
a veracidade da autodeclaração, caberia à declarante comprovar aquilo que
declarou ou, ao menos, que passou a cumprir as cotas após a expedição da
declaração; no entanto, somente nas contrarrazões, a vencedora passou a alegar,
sem provas idôneas, que teria tentado contratar aprendizes e pessoas com
deficiência, sem êxito, anexando, como supostas provas das tentativas, capturas
de tela (“prints”) de ofertas de emprego. Em vista disso, e considerando
que a vencedora alegara estar adotando medidas para suprir o provisório
descumprimento das cotas para pessoas com deficiência e reabilitados da
Previdência, bem como arguira que a condição de descumprimento de cotas adveio
da ampliação do quadro de pessoal para atender às demandas de novos contratos
firmados recentemente com órgãos públicos, mencionando inclusive dois deles, a
unidade técnica concluiu que o sobredito questionamento “suscita discussão
que extrapola o seu fim (suspensão da contratação decorrente do PE 90005/2025),
devendo ser considerado improcedente para esse fim pretendido, uma vez que a
entidade licitante adotou as medidas (diligência, contraditório) e
interpretação (conforme literalidade da lei, do edital e da jurisprudência
atual) cabíveis para a habilitação da empresa vencedora do certame”. Em seu
voto, ao manifestar anuência à instrução da unidade técnica, o relator
ressaltou que o tema em debate é complexo, destacando, preliminarmente, que ele
se insere na denominada função regulatória das contratações públicas, associada
ao “reconhecimento de que licitações e contratos podem ser utilizados não
apenas para os objetivos que tradicionalmente lhes são reservados – por
exemplo, a busca da melhor proposta, com observância da isonomia entre os
licitantes, ou a estrita satisfação de uma demanda que justifica a contratação
– mas também como instrumento de regulação do mercado, de modo a torná-lo mais
livre, competitivo e sustentável, bem como induzir práticas que propiciem
efeitos sociais imediatos ou futuros desejáveis, pautadas pelo atendimento de
finalidades públicas constitucionalmente consagrada. (FORNI, João Paulo;
MACIEL, Francismary Souza Pimenta; GABRIEL, Yasser. Breve história do menor
preço e da função regulatória nas contratações públicas brasileiras. Revista de
Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 22, n. 86, p. 95-112,
abr./jun. 2024, p. 95-96)”. Na situação em tela, acrescentou ele, as cotas
legais destinadas a pessoas com deficiência e aprendizes buscam a maior
inserção de grupos que o legislador entendeu por bem proteger na seara dos
contratos administrativos. Entretanto, quando se trata da licitação
propriamente dita – fase competitiva –, a proteção a certos interesses
socialmente relevantes “deve ser ponderada com outros princípios que regem a
matéria, a exemplo da competitividade, da isonomia e da economicidade”.
Considerou relevante pontuar que três dos quatros objetivos do processo
licitatório constantes da Lei 14.133/2021 dizem respeito a esses últimos
aspectos: “assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de
contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se
refere ao ciclo de vida do objeto; assegurar tratamento isonômico entre os
licitantes, bem como a justa competição; evitar contratações com sobrepreço ou
com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos
contratos”. Não se quer dizer com isso, continuou o relator, que haja
intransponível oposição entre os princípios citados e a função regulatória,
devendo ambos os aspectos, no que for possível, serem sopesados e homenageados.
Para ele, a própria interpretação do que seria o “resultado mais vantajoso
para a Administração Pública” e a expressa menção ao “ciclo de vida do
objeto”, presentes nos objetivos do processo licitatório estabelecidos na
Lei 14.133/2021, permitiriam supor uma diretriz de harmonização. No entanto, “em
certos momentos e circunstâncias, eventualmente, algum aspecto terá de ceder em
face do outro”. Partindo dessas premissas, o relator salientou que, na fase
de seleção da melhor proposta, deve-se adotar cautela redobrada antes de
inabilitar a licitante com a melhor oferta e, nesse sentido, a Lei 14.133/2021
permite que se exija, na fase de habilitação, “declaração de que cumpre as
exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado
da Previdência Social” (art. 63, inciso IV). A corroborar sua assertiva, o
relator transcreveu o seguinte excerto do voto condutor do Acórdão
523/2025-Plenário, da sua lavra: “a
exigência legal, na fase de habilitação, é apenas a declaração formal do
licitante de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com
deficiência e para reabilitado da Previdência Social, presumindo-se sua
veracidade com base nos princípios da boa-fé e da lealdade processual”.
Frisou, no entanto, nada impedir que essa declaração seja questionada de ofício
ou a partir de elementos trazidos ao processo licitatório, no âmbito de recurso
administrativo, no qual se argumente a inveracidade da referida declaração.
Novamente, ele considerou pertinente referenciar o seguinte trecho do voto
apresentado no Acórdão
523/2025-Plenário: “a certidão
emitida pelo MTE é uma das formas de se evidenciar o cumprimento da exigência
legal da reserva de cotas aqui tratada. Contudo, não é a única. Na mesma linha,
a apresentação de certidão que ateste a inconformidade de licitante quanto ao
requisito não é motivo suficiente para sua inabilitação”. Ressaltou também
que as seguintes passagens seriam igualmente relevantes ao caso em apreço: “16.
Vale dizer que a própria certidão do MTE registra a possibilidade de o seu
conteúdo não representar a realidade no exato momento de sua emissão, visto não
ser uma certidão emitida com dados on line, de modo que eventuais registros de
admissão ou de desligamento podem não estar ali representados em razão da
defasagem na atualização de dados registrados no e-Social [...]. 17. Aliás, cabe
salientar que a certidão do MTE se propõe a atestar uma situação com inerente
caráter dinâmico, pelas constantes alterações de quantitativos decorrentes de
admissões e desligamentos e, por consequência, de enquadramento nas faixas de
percentuais exigidos pela lei. [...] 19. Assim, a certidão do MTE que atesta o
não cumprimento do percentual estabelecido pelo art. 93 da Lei 8.213/1991 não é
suficiente, por si só, para inabilitar um licitante, sendo necessário que se
abra espaço para que a empresa que prestou a declaração de cumprimento do item
em tela reúna evidências da veracidade de sua declaração.”. Enfatizou ainda
que, naquela assentada, apresentara posicionamento do Tribunal Superior do
Trabalho (TST) no sentido de afastar a responsabilidade das empresas pelo
insucesso em contratar pessoas com deficiência, desde que seu esforço restasse
evidenciado: “Esta Corte já se posicionou no sentido de reconhecer o ônus da
empregadora pelo cumprimento das exigências do art. 93 da Lei 8.213/91, mas de
afastar sua responsabilidade pelo insucesso em contratar pessoas com
deficiência, em razão dos esforços comprovadamente empenhados (TST – RR:
1002364- 57.2016.5.02.0204)”. No mesmo sentido, transcreveu o seguinte
trecho do Acórdão
2204/2025-Segunda Câmara: “Considerando
os pareceres uniformes exarados pela Unidade de Auditoria Especializada em
Contratações (AudContratações) às peças 14-16, dos quais são colhidas as
seguintes conclusões: i) o Tribunal Superior do Trabalho tem considerado que
nem sempre haverá disponibilidade de pessoas que se enquadrem no quantitativo
mínimo abstratamente previsto para beneficiários reabilitados ou pessoas
portadoras de deficiência. Sendo assim, não seria possível apenar a empresa por
tal situação. Antes disso, seria o caso de se perquirir se o não atingimento da
meta se deve à conduta discriminatória ou à negligência por parte da empresa no
cumprimento do dever jurídico que a norma impõe (processos Ag-AIRR -
112345.2015.5.15.0068, julgamento em 30/3/2022, e ARR - 1588-24.2015.5.09.0654,
julgamento em 14/9/2022); ii) recente Parecer 60/2024/DECOR/CGU/AGU, aprovado
em 12/11/2024, concluiu que a declaração apresentada pelo licitante tem
presunção de veracidade juris tantum (relativa). Se houver
concomitantemente à apresentação da declaração um documento da fiscalização
trabalhista que infirme o seu conteúdo, deverá prevalecer esse em detrimento
daquela. Caso se verifique, após consulta ao Ministério do Trabalho, que a
licitante não atende ao quantitativo mínimo previsto em lei para a reserva de
cargos para pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social,
impõe-se sua inabilitação no certame. Não caberia ao agente de contratação o
ônus de comprovar subjetivamente se os esforços empreendidos para o atendimento
à exigência legal são ou não suficientes; iii) deve-se levar em consideração os
riscos da imposição desse entendimento mais recente da AGU, sob a ótica do
interesse público. No âmbito dos procedimentos licitatórios, é possível que o
número de empresas aptas a participar dos certames fique muito reduzido,
interferindo na competitividade e na obtenção de proposta vantajosa, com
potencial de prejuízo ao erário; no âmbito dos contratos em andamento, é
possível que vários deles tenham que ser extintos, com potencial de afetar a
continuidade da atividade da administração; iv) a AudContratações pretende
realizar fiscalização para compreender melhor as circunstâncias e fragilidades
da emissão dessas certidões pelo site do MTE, como também para conhecer o
universo de empresas em situação irregular e analisar os riscos e consequências
de se considerar determinantes essas certidões para efeito de habilitação em
licitações públicas; v) considerando ser recente a solução da controvérsia
sobre a questão pela AGU, bem como em razão de dúvidas suscitadas sobre a eficácia
das certidões emitidas pelo site do MTE para este fim, não seria razoável
concluir que houve irregularidade no curso da licitação; [...] b) no mérito,
considerar a representação improcedente;”. Dado então que a certidão do MTE
cria a presunção relativa de descumprimento da cota legal (se apresentada no
processo licitatório no sentido de impugnar declaração de participante), o
relator reafirmou o que ele mesmo assinalara no voto condutor do Acórdão
523/2025-Plenário: “os agentes
responsáveis pelos processos licitatórios não podem simplesmente desconsiderar
a existência, nesse caso, de certidão que aponte o descumprimento de requisitos
legais por parte da empresa licitante”. A partir disso, poder-se-ia então
dizer que “compete à Administração, diante de declaração de licitante
afirmando o atendimento de cota legal que, por sua vez, reste impugnada por
certidão do MTE atestando o contrário, diligenciar ao participante do certame
para que este esclareça a situação”, e que tanto o caráter dinâmico que
permeia a questão, concernente a constantes alterações de quantitativos
decorrentes de admissões e desligamentos, quanto eventual dificuldade no
preenchimento das cotas, desde que evidenciados, “são justificativas
plausíveis a afastar a inabilitação”. Afinal de contas, tais aspectos “serão
fiscalizados quando da execução contratual”, podendo levar à aplicação de
sanções e até mesmo à rescisão contratual, caso a contratante se arvore a
descumprir seus deveres. Acrescentou que o dever do “agente de
contratação/pregoeiro” de aferir a suficiência dos argumentos apresentados
por licitante para justificar o eventual descumprimento da cota legal “deve
ser encarado com realismo”, pois não há, em regra, “meios para
que esse agente faça uma aferição detalhada e rigorosa a respeito do alegado
pela empresa. Sua incumbência é de aferir a plausibilidade das informações
trazidas. Se carentes de qualquer evidenciação ou se claramente irrazoáveis, a
inabilitação é de rigor. Por outro lado, se aptas, ao menos em tese, a
justificar a existência de certidão negativa, deve o agente público primar pela
manutenção daquele proponente no certame.”. Seria essa a razão, sob a sua
ótica, pela qual a exigência de preenchimento da cota para aprendizes na fase
de habilitação, cuja veracidade poderia ser aferida por meio de certidão do
MTE, “carece de previsão legal”. Para essa fase, a Lei 14.133/2021 “fala
apenas em reserva de cargos para pessoa com deficiência e para
reabilitado da Previdência Social”, o que permitiria inferir a “prevalência,
nesse momento, do princípio da competitividade frente à função regulatória”.
Afirmou que tal função será prestigiada quando da execução contratual,
consoante a mencionada lei: “Art. 116. Ao longo de toda a execução do
contrato, o contratado deverá cumprir a reserva de cargos prevista em lei
para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para
aprendiz, bem como as reservas de cargos previstas em outras normas
específicas.” (grifos do relator). E arrematou: “Mesmo quanto às cotas
passíveis de aferição quando da habilitação (pessoa com deficiência e
reabilitado da Previdência Social), deve-se ter em mente que o peso da função
regulatória é menor num primeiro momento, ganhando corpo posteriormente, quando
da execução contratual – neste último momento, como já afirmado, eventual
descumprimento no preenchimento das cotas, se não justificado, pode levar a
sanções e à rescisão contratual. Na fase de seleção da melhor proposta, têm
relevo outros princípios, razão pela qual, diante da plausibilidade dos
argumentos apresentados por licitante que tenha sua declaração infirmada por
certidão do MTE, deve o agente responsável pela condução do certame proceder à
habilitação.” Feitas essas considerações, o relator entendeu suficientes as
justificativas da empresa vencedora do item 2 da licitação, ao assinalar que
ela “estava adotando medidas para suprir o provisório descumprimento da cota
para pessoa com deficiência e reabilitado da previdência, sem qualquer menção
ao descumprimento da cota para aprendiz (apesar do recurso administrativo e as
certidões negativas contemplarem o descumprimento de todas as cotas); e arguiu
que a condição de descumprimento de cotas adveio da ampliação do quadro de
pessoal para atender as demandas de novos contratos firmados recentemente com
órgãos públicos, mencionando dois deles”. Ao final, o relator propôs, e o
Plenário decidiu, considerar improcedente a representação.
Acórdão
1930/2025 Plenário, Representação, Relator Ministro Jorge Oliveira.