segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Certidão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que indique o não cumprimento do percentual exigido pelo art. 93 da Lei 8.213/1991 não é suficiente, por si só, para a inabilitação de licitante que declarou cumprir as exigências de reserva de cargos para pessoas com deficiência

 

Certidão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que indique o não cumprimento do percentual exigido pelo art. 93 da Lei 8.213/1991 não é suficiente, por si só, para a inabilitação de licitante que declarou cumprir as exigências de reserva de cargos para pessoas com deficiência e para reabilitados da Previdência Social (art. 63, inciso IV, da Lei 14.133/2021). Compete à Administração diligenciar a licitante para que esclareça a situação, por meio da apresentação de justificativas plausíveis que evidenciem eventual impossibilidade de atendimento aos quantitativos previstos na lei, em face de admissões e desligamentos, bem como de dificuldades no preenchimento das cotas, a fim de afastar a inabilitação, devendo tais aspectos serem fiscalizados, com maior rigor, durante a execução contratual.

Representação formulada ao TCU indicou possíveis irregularidades no Pregão Eletrônico 90005/2025, sob a responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde, cujo objeto era a contratação de serviços de apoio administrativo e operacional para atender às demandas em Rondônia (Funasa/RO), a serem executados com regime de dedicação exclusiva de mão de obra. Entre as irregularidades apontadas, ganhou relevo o fato de a empresa vencedora do “item 2 licitado” não haver comprovado o cumprimento das cotas legais destinadas a pessoas com deficiência e aprendizes, previstas, respectivamente, no art. 93 da Lei 8.213/1991 e no art. 429 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Quanto a esse ponto, a unidade técnica consignou que, ainda na fase de impugnação ao edital, uma das licitantes apresentara questionamento ao pregoeiro, o qual entendera bastar a mera declaração para fins de atendimento à exigência contida no art. 63, inciso IV, da Lei 14.133/2021, que assim dispõe: “Art. 63. Na fase de habilitação das licitações serão observadas as seguintes disposições: (...) IV - será exigida do licitante declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, previstas em lei e em outras normas específicas.”. Mediante interposição de recurso administrativo no aludido processo licitatório, fora apontado e comprovado que a licitante habilitada no item 2 estava com cotas de aprendizes e pessoas com deficiência inferiores ao previsto na legislação, “conforme certidões emitidas em 23/6/2025”. Em contrarrazões, a empresa vencedora alegou ter envidado esforços para cumprir as cotas legais mediante a oferta de vagas, porém sem sucesso. Assim sendo, o recurso administrativo foi rejeitado pelo pregoeiro e pela autoridade superior, com a consequente manutenção da habilitação da vencedora. Segundo o autor da representação, uma vez questionada a veracidade da autodeclaração, caberia à declarante comprovar aquilo que declarou ou, ao menos, que passou a cumprir as cotas após a expedição da declaração; no entanto, somente nas contrarrazões, a vencedora passou a alegar, sem provas idôneas, que teria tentado contratar aprendizes e pessoas com deficiência, sem êxito, anexando, como supostas provas das tentativas, capturas de tela (“prints”) de ofertas de emprego. Em vista disso, e considerando que a vencedora alegara estar adotando medidas para suprir o provisório descumprimento das cotas para pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência, bem como arguira que a condição de descumprimento de cotas adveio da ampliação do quadro de pessoal para atender às demandas de novos contratos firmados recentemente com órgãos públicos, mencionando inclusive dois deles, a unidade técnica concluiu que o sobredito questionamento “suscita discussão que extrapola o seu fim (suspensão da contratação decorrente do PE 90005/2025), devendo ser considerado improcedente para esse fim pretendido, uma vez que a entidade licitante adotou as medidas (diligência, contraditório) e interpretação (conforme literalidade da lei, do edital e da jurisprudência atual) cabíveis para a habilitação da empresa vencedora do certame”. Em seu voto, ao manifestar anuência à instrução da unidade técnica, o relator ressaltou que o tema em debate é complexo, destacando, preliminarmente, que ele se insere na denominada função regulatória das contratações públicas, associada ao “reconhecimento de que licitações e contratos podem ser utilizados não apenas para os objetivos que tradicionalmente lhes são reservados – por exemplo, a busca da melhor proposta, com observância da isonomia entre os licitantes, ou a estrita satisfação de uma demanda que justifica a contratação – mas também como instrumento de regulação do mercado, de modo a torná-lo mais livre, competitivo e sustentável, bem como induzir práticas que propiciem efeitos sociais imediatos ou futuros desejáveis, pautadas pelo atendimento de finalidades públicas constitucionalmente consagrada. (FORNI, João Paulo; MACIEL, Francismary Souza Pimenta; GABRIEL, Yasser. Breve história do menor preço e da função regulatória nas contratações públicas brasileiras. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 22, n. 86, p. 95-112, abr./jun. 2024, p. 95-96)”. Na situação em tela, acrescentou ele, as cotas legais destinadas a pessoas com deficiência e aprendizes buscam a maior inserção de grupos que o legislador entendeu por bem proteger na seara dos contratos administrativos. Entretanto, quando se trata da licitação propriamente dita – fase competitiva –, a proteção a certos interesses socialmente relevantes “deve ser ponderada com outros princípios que regem a matéria, a exemplo da competitividade, da isonomia e da economicidade”. Considerou relevante pontuar que três dos quatros objetivos do processo licitatório constantes da Lei 14.133/2021 dizem respeito a esses últimos aspectos: “assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto; assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição; evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos”. Não se quer dizer com isso, continuou o relator, que haja intransponível oposição entre os princípios citados e a função regulatória, devendo ambos os aspectos, no que for possível, serem sopesados e homenageados. Para ele, a própria interpretação do que seria o “resultado mais vantajoso para a Administração Pública” e a expressa menção ao “ciclo de vida do objeto”, presentes nos objetivos do processo licitatório estabelecidos na Lei 14.133/2021, permitiriam supor uma diretriz de harmonização. No entanto, “em certos momentos e circunstâncias, eventualmente, algum aspecto terá de ceder em face do outro”. Partindo dessas premissas, o relator salientou que, na fase de seleção da melhor proposta, deve-se adotar cautela redobrada antes de inabilitar a licitante com a melhor oferta e, nesse sentido, a Lei 14.133/2021 permite que se exija, na fase de habilitação, “declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social” (art. 63, inciso IV). A corroborar sua assertiva, o relator transcreveu o seguinte excerto do voto condutor do Acórdão 523/2025-Plenário, da sua lavra: “a exigência legal, na fase de habilitação, é apenas a declaração formal do licitante de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, presumindo-se sua veracidade com base nos princípios da boa-fé e da lealdade processual”. Frisou, no entanto, nada impedir que essa declaração seja questionada de ofício ou a partir de elementos trazidos ao processo licitatório, no âmbito de recurso administrativo, no qual se argumente a inveracidade da referida declaração. Novamente, ele considerou pertinente referenciar o seguinte trecho do voto apresentado no Acórdão 523/2025-Plenário: “a certidão emitida pelo MTE é uma das formas de se evidenciar o cumprimento da exigência legal da reserva de cotas aqui tratada. Contudo, não é a única. Na mesma linha, a apresentação de certidão que ateste a inconformidade de licitante quanto ao requisito não é motivo suficiente para sua inabilitação”. Ressaltou também que as seguintes passagens seriam igualmente relevantes ao caso em apreço: “16. Vale dizer que a própria certidão do MTE registra a possibilidade de o seu conteúdo não representar a realidade no exato momento de sua emissão, visto não ser uma certidão emitida com dados on line, de modo que eventuais registros de admissão ou de desligamento podem não estar ali representados em razão da defasagem na atualização de dados registrados no e-Social [...]. 17. Aliás, cabe salientar que a certidão do MTE se propõe a atestar uma situação com inerente caráter dinâmico, pelas constantes alterações de quantitativos decorrentes de admissões e desligamentos e, por consequência, de enquadramento nas faixas de percentuais exigidos pela lei. [...] 19. Assim, a certidão do MTE que atesta o não cumprimento do percentual estabelecido pelo art. 93 da Lei 8.213/1991 não é suficiente, por si só, para inabilitar um licitante, sendo necessário que se abra espaço para que a empresa que prestou a declaração de cumprimento do item em tela reúna evidências da veracidade de sua declaração.”. Enfatizou ainda que, naquela assentada, apresentara posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) no sentido de afastar a responsabilidade das empresas pelo insucesso em contratar pessoas com deficiência, desde que seu esforço restasse evidenciado: “Esta Corte já se posicionou no sentido de reconhecer o ônus da empregadora pelo cumprimento das exigências do art. 93 da Lei 8.213/91, mas de afastar sua responsabilidade pelo insucesso em contratar pessoas com deficiência, em razão dos esforços comprovadamente empenhados (TST – RR: 1002364- 57.2016.5.02.0204)”. No mesmo sentido, transcreveu o seguinte trecho do Acórdão 2204/2025-Segunda Câmara: “Considerando os pareceres uniformes exarados pela Unidade de Auditoria Especializada em Contratações (AudContratações) às peças 14-16, dos quais são colhidas as seguintes conclusões: i) o Tribunal Superior do Trabalho tem considerado que nem sempre haverá disponibilidade de pessoas que se enquadrem no quantitativo mínimo abstratamente previsto para beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência. Sendo assim, não seria possível apenar a empresa por tal situação. Antes disso, seria o caso de se perquirir se o não atingimento da meta se deve à conduta discriminatória ou à negligência por parte da empresa no cumprimento do dever jurídico que a norma impõe (processos Ag-AIRR - 112345.2015.5.15.0068, julgamento em 30/3/2022, e ARR - 1588-24.2015.5.09.0654, julgamento em 14/9/2022); ii) recente Parecer 60/2024/DECOR/CGU/AGU, aprovado em 12/11/2024, concluiu que a declaração apresentada pelo licitante tem presunção de veracidade juris tantum (relativa). Se houver concomitantemente à apresentação da declaração um documento da fiscalização trabalhista que infirme o seu conteúdo, deverá prevalecer esse em detrimento daquela. Caso se verifique, após consulta ao Ministério do Trabalho, que a licitante não atende ao quantitativo mínimo previsto em lei para a reserva de cargos para pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social, impõe-se sua inabilitação no certame. Não caberia ao agente de contratação o ônus de comprovar subjetivamente se os esforços empreendidos para o atendimento à exigência legal são ou não suficientes; iii) deve-se levar em consideração os riscos da imposição desse entendimento mais recente da AGU, sob a ótica do interesse público. No âmbito dos procedimentos licitatórios, é possível que o número de empresas aptas a participar dos certames fique muito reduzido, interferindo na competitividade e na obtenção de proposta vantajosa, com potencial de prejuízo ao erário; no âmbito dos contratos em andamento, é possível que vários deles tenham que ser extintos, com potencial de afetar a continuidade da atividade da administração; iv) a AudContratações pretende realizar fiscalização para compreender melhor as circunstâncias e fragilidades da emissão dessas certidões pelo site do MTE, como também para conhecer o universo de empresas em situação irregular e analisar os riscos e consequências de se considerar determinantes essas certidões para efeito de habilitação em licitações públicas; v) considerando ser recente a solução da controvérsia sobre a questão pela AGU, bem como em razão de dúvidas suscitadas sobre a eficácia das certidões emitidas pelo site do MTE para este fim, não seria razoável concluir que houve irregularidade no curso da licitação; [...] b) no mérito, considerar a representação improcedente;”. Dado então que a certidão do MTE cria a presunção relativa de descumprimento da cota legal (se apresentada no processo licitatório no sentido de impugnar declaração de participante), o relator reafirmou o que ele mesmo assinalara no voto condutor do Acórdão 523/2025-Plenário: “os agentes responsáveis pelos processos licitatórios não podem simplesmente desconsiderar a existência, nesse caso, de certidão que aponte o descumprimento de requisitos legais por parte da empresa licitante”. A partir disso, poder-se-ia então dizer que “compete à Administração, diante de declaração de licitante afirmando o atendimento de cota legal que, por sua vez, reste impugnada por certidão do MTE atestando o contrário, diligenciar ao participante do certame para que este esclareça a situação”, e que tanto o caráter dinâmico que permeia a questão, concernente a constantes alterações de quantitativos decorrentes de admissões e desligamentos, quanto eventual dificuldade no preenchimento das cotas, desde que evidenciados, “são justificativas plausíveis a afastar a inabilitação”. Afinal de contas, tais aspectos “serão fiscalizados quando da execução contratual”, podendo levar à aplicação de sanções e até mesmo à rescisão contratual, caso a contratante se arvore a descumprir seus deveres. Acrescentou que o dever do “agente de contratação/pregoeiro” de aferir a suficiência dos argumentos apresentados por licitante para justificar o eventual descumprimento da cota legal “deve ser encarado com realismo”, pois não há, em regra, meios para que esse agente faça uma aferição detalhada e rigorosa a respeito do alegado pela empresa. Sua incumbência é de aferir a plausibilidade das informações trazidas. Se carentes de qualquer evidenciação ou se claramente irrazoáveis, a inabilitação é de rigor. Por outro lado, se aptas, ao menos em tese, a justificar a existência de certidão negativa, deve o agente público primar pela manutenção daquele proponente no certame.”. Seria essa a razão, sob a sua ótica, pela qual a exigência de preenchimento da cota para aprendizes na fase de habilitação, cuja veracidade poderia ser aferida por meio de certidão do MTE, “carece de previsão legal”. Para essa fase, a Lei 14.133/2021 “fala apenas em reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social”, o que permitiria inferir a prevalência, nesse momento, do princípio da competitividade frente à função regulatória”. Afirmou que tal função será prestigiada quando da execução contratual, consoante a mencionada lei: “Art. 116. Ao longo de toda a execução do contrato, o contratado deverá cumprir a reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz, bem como as reservas de cargos previstas em outras normas específicas.” (grifos do relator). E arrematou: “Mesmo quanto às cotas passíveis de aferição quando da habilitação (pessoa com deficiência e reabilitado da Previdência Social), deve-se ter em mente que o peso da função regulatória é menor num primeiro momento, ganhando corpo posteriormente, quando da execução contratual – neste último momento, como já afirmado, eventual descumprimento no preenchimento das cotas, se não justificado, pode levar a sanções e à rescisão contratual. Na fase de seleção da melhor proposta, têm relevo outros princípios, razão pela qual, diante da plausibilidade dos argumentos apresentados por licitante que tenha sua declaração infirmada por certidão do MTE, deve o agente responsável pela condução do certame proceder à habilitação.” Feitas essas considerações, o relator entendeu suficientes as justificativas da empresa vencedora do item 2 da licitação, ao assinalar que ela “estava adotando medidas para suprir o provisório descumprimento da cota para pessoa com deficiência e reabilitado da previdência, sem qualquer menção ao descumprimento da cota para aprendiz (apesar do recurso administrativo e as certidões negativas contemplarem o descumprimento de todas as cotas); e arguiu que a condição de descumprimento de cotas adveio da ampliação do quadro de pessoal para atender as demandas de novos contratos firmados recentemente com órgãos públicos, mencionando dois deles”. Ao final, o relator propôs, e o Plenário decidiu, considerar improcedente a representação.

Acórdão 1930/2025 Plenário, Representação, Relator Ministro Jorge Oliveira.