TCU Decisão 215/1999-Plenário. Trecho.
ALTERAÇÕES QUALITATIVAS X ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS
Neste
ponto, cumpre distinguir as alterações contratuais quantitativas das
qualitativas.
Considerando que o objeto do contrato distingue-se
em natureza e dimensão, tem-se a natureza sempre intangível, tanto nas
alterações quantitativas quanto nas qualitativas.
Não se pode transformar a aquisição de bicicletas
em compra de aviões, ou a prestação de serviços de marcenaria em serralheria.
Contudo, nas modificações quantitativas, a dimensão
do objeto pode ser modificada dentro dos limites previstos no § 1.º do art. 65
da Lei 8.666/93, isto é, pode ser adquirida uma quantidade de bicicletas maior do
que o originalmente previsto, desde que o acréscimo, em valor, não ultrapasse
25% do valor inicial atualizado do contrato.
As alterações qualitativas, por sua vez, decorrem
de modificações necessárias ou convenientes nas quantidades de obras ou
serviços sem, entretanto, implicarem mudanças no objeto contratual, seja em
natureza ou dimensão.
Convém distinguir dimensão do objeto de quantidade
de obras ou serviços necessários à realização do objeto. Servimo-nos dos
ensinamentos de EROS ROBERTO GRAU, verbis:
'(a) contrata-se a pavimentação de 100km de
rodovia; se a Administração estender a pavimentação por mais 10km, estará
acrescendo, quantitativamente, o seu objeto - a dimensão do objeto foi
alterada;
(b) previa-se, para a realização do objeto, a
execução de serviços de terraplanagem de 1000m3; se circunstâncias
supervenientes importarem que se tenha de executar serviços de terraplanagem de
1200m3, estará sendo acrescida a quantidade de obras, sem que, contudo, se
esteja a alterar a dimensão do objeto - a execução de mais 200m3 de serviços de
terraplanagem viabiliza a execução do objeto originalmente contratado'
(Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 1995, p.29).
Quase sempre, as alterações qualitativas são
necessárias e imprescindíveis à realização do objeto e, conseqüentemente, à realização
do interesse público primário, pois que este se confunde com aquele.
As alterações qualitativas podem derivar tanto de
modificações de projeto ou de especificação do objeto quanto da necessidade de acréscimo
ou supressão de obras, serviços ou materiais, decorrentes de situações de fato
vislumbradas após a contratação.
Conquanto não se modifique o objeto contratual, em
natureza ou dimensão, é de ressaltar que a implementação de alterações
qualitativas requerem, em regra, mudanças no valor original do contrato.
Enfrentemos
a questão então colocada.
De início, é de ver que fere não só o Direito como
também o senso comum a hipótese de alterações contratuais ilimitadas no âmbito administrativo,
sobretudo as unilaterais. Os limites genéricos importam o respeito ao direito
dos contratados e a interdição da fraude à licitação.
O respeito ao contratado - explicitamente exigido
no art. 58, I, da Lei 8.666/93 -consubstancia-se na mantença do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato, na intangibilidade do objeto e, nas alterações unilaterais, na
imposição objetiva de limite máximo aos acréscimos e supressões. Evidente que,
nas alterações consensuais, o contratado manifesta sua vontade, podendo
rejeitar acréscimos ou supressões indesejáveis, dentro das fronteiras legais.
Nas alterações unilaterais quantitativas, previstas
no art. 65, I, b, da Lei 8.666/93, a referência aos limites é expressa, uma vez
que os contratos podem ser alterados unilateralmente 'quando necessária a modificação
do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de
seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei'. Estão eles previstos no § 1.º
do referido artigo.
Assim, em relação às alterações unilaterais
quantitativas (art. 65, I, b), não se tem dúvida sobre a incidência dos limites
legais. Nas alterações unilaterais qualitativas, consubstanciadas no art. 65, I,
“a”, da aludida Lei, não há referência expressa a esses limites, pois os
contratos podem ser alterados 'quando houver modificação do projeto ou das
especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos'.
Nas opiniões de eminentes doutrinadores, algumas
até colacionadas no texto da presente consulta, como CAIO TÁCITO, MARÇAL JUSTEN
FILHO e ANTONIO MARCELO DA SILVA, não se aplicam às alterações qualitativas unilaterais
os limites previstos no § 1.º do art. 65 da Lei, porque a mencionada alínea “a”
não lhes faz referência.
'2.1. Modificação unilateral
Genericamente previsto no art. 58-I, está
condicionado por seu objetivo: a 'melhor adequação às finalidades de interesse
público'.
Pode decorrer da modificação do projeto ou das
especificações para, segundo o art. 65-I, 'melhor adequação técnica aos seus
objetivos'.
Essa alteração encontra, contudo, barreiras e
condicionantes. De um lado, nos direitos do contratado, a quem se assegura a
intangibilidade do equilíbrio econômico-financeiro e da natureza do objeto do
contrato, além de um limite máximo de valor para os acréscimos e supressões
(art.65-§1.º)' (Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994,
pp. 227/228) (grifamos).
Mesmo que se entenda que não se possa extrair
diretamente do art. 65, I, “a”, essa ilação, em virtude da não-referência aos
limites máximos de acréscimo e supressão de valor, a inexistência desses
limites não se coaduna com o Direito, pois pode ser deduzida a partir do art.
58, I, da Lei de Licitações e Contratos, anelado pelo princípio da proporcionalidade,
em virtude da observância aos direitos do contratado.
A utilização da proporção adequada nos atos da
Administração é condição de legalidade deles. O atendimento ao interesse
público não deve ser esteio a sacrifícios desnecessários do interesse privado.
É o que reza o princípio da proporcionalidade, que proíbe os excessos da Administração.
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO esclarece: 'as
competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade
proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de
interesse público a que estão atreladas'
(ob. cit., p. 67).
A hipótese de supressão ilimitada no valor
contratual é que nos leva a compreender melhor os excessos que podem advir da
inexistência dessas barreiras.
Imagine-se, como exemplo, a disponibilidade de nova
tecnologia que pudesse reduzir os custos de determinada obra em 80%. Seria
possível à Administração impor ao contratado, unilateralmente, a obrigação de
ele adotá-la na execução da obra, reduzindo o valor inicial do contrato na mesma
proporção, sem considerar a manifestação de sua vontade ou recusa?
Evidente que se trata de uma supressão de valor
contratual desarrazoada. Mas o que seria razoável? 70%? 60%? 50% .... 25%?. A fixação
desse limite, pensamos, inclui-se na discricionariedade do legislador.
Cumpre, aqui, esclarecer que, a fim de não submeter
o contratado a alteração contratual unilateral que não seja razoável ou
proporcional, a opção que restaria à Administração seria a de rescindir unilateralmente
o contrato, nos termos do art. 78, XII, da Lei n º 8.666/93, e proceder a nova
licitação e contratar o novo objeto.
Referidos limites, em nossa opinião, têm de ser
claros, objetivos e preestabelecidos em lei, pois é a partir deles que o
possível contratado dimensiona os riscos que deve suportar, na hipótese de uma alteração
unilateral imposta pela Administração.
Acreditamos até que poucos contratariam com a
Administração se não houvesse limites objetivos, claros e fixados em lei a esse
poder de alteração unilateral a ela concedido.
Chamamos mais uma vez a esclarecedora orientação de
CARLOS ARI SUNDFELD:
'Ao contratar com a Administração, a empresa
privada já sabe que, até certo limite, pode ser constrangida a realizar
quantidade de prestações superior à inicialmente estipulada. Quando participa
de licitação e, especialmente, quando trava um contrato, deve se preparar para
tal eventualidade' ('Contratos Administrativos - Acréscimos de obras e serviços
- Alteração', p. 153).
Por isso, alinhamo-nos à tese de que as alterações
unilaterais qualitativas estão sujeitas aos mesmos limites escolhidos pelo legislador
para as alterações unilaterais quantitativas, previstos no art. 65, § 1.º, da
Lei 8.666/93, não obstante a falta de referência a eles no art. 65, I, “a”.
Fundamentamo-nos na necessidade de previsão de
limites objetivos e claros em Lei, no princípio da proporcionalidade e no
respeito aos direitos do contratado, prescrito no art. 58, I, da Lei 8.666/93.
Note-se que a supressão, por parte da
Administração, de obras, serviços ou compras, que excedam os limites prescritos
no art. 65, § 1.º, é também causa de rescisão do contrato, por inexecução pela Administração,
conforme prevê o art. 78, XIII, da Lei 8.666/93. O que reforça a nossa tese, de
observância a esses limites nas alterações unilaterais, sejam quantitativas ou
qualitativas.
Embora nossa exemplificação tenha-se baseado na
hipótese de supressão de serviços, porque é mais evidente a onerosidade ao
contratado, cabe ressaltar que a não-imposição de barreiras aos acréscimos
unilaterais pode também ser fonte de ônus desnecessário ao contratado.
Vejam-se as palavras de CARLOS ARI SUNDFELD sobre o
assunto, in verbis:
'Se a Administração pudesse impor ao particular a
ampliação desmesurada de suas obrigações, mesmo com a garantia de incremento da
remuneração, poderia, em muitos casos, inviabilizar o cumprimento do contrato.
É que, de um lado, a empresa pode não ter capacidade operacional para atender
ao aumento de suas obrigações; de outro, a realização das prestações
acrescidas, pelo mesmo preço unitário previsto no contrato, pode resultar
excessivamente onerosa' ('Contratos Administrativos - Acréscimos de obras e
serviços - Alteração', p. 153).
VI
Isso não significa, entretanto, que, na realização
do interesse público, a Administração não possa, em caráter excepcional,
ultrapassar referidos limites.
Em nossa opinião, poderia fazê-lo, em situações
excepcionalíssimas, na hipótese de alterações qualitativas, revisando, não
unilateralmente, mas consensualmente, as obrigações e o valor do contrato.
Novamente nos socorremos das lições de CELSO
ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, in verbis:
'Embora a lei não o diga, entendemos que, por mútuo
acordo, caberia ainda, modificação efetuada acima dos limites previstos no §
1.º do art. 65, se ocorrer verdadeira e induvidosamente alguma situação anômala,
excepcionalíssima, ou então perante as chamadas 'sujeições imprevistas'; isto
é: quando dificuldades naturais insuspeitadas se antepõem à realização da obra
ou serviço, exigindo tal acréscimo' (ob.cit, p. 407).
Tais alterações devem ser efetuadas por acordo
mútuo - bilaterais -, pois dessa maneira evita-se a excessiva onerosidade nas
obrigações do contratado, vez que o novo pacto passa a depender da manifestação
de sua vontade.
Além de consensuais, sustentamos que tais
alterações devem ser necessariamente qualitativas. Estas, diferentemente das
quantitativas - que não configuram embaraços à execução do objeto como
inicialmente avençado -, ou são imprescindíveis ou viabilizam a realização do objeto.
Sem a implementação das modificações qualitativas
não há objeto e, por conseguinte, não há a satisfação do interesse público
primário que determinou a celebração do contrato. Relembrando o exemplo de alterações
qualitativas que aduzimos, verifica-se que, sem o acréscimo dos serviços de
terraplanagem, não seria possível a realização dos 100km de pavimentação.
Distinta é a situação, quando a modificação
contratual visa a aumentar a extensão da via de 100 para 150km - alteração quantitativa.
Nesse caso, a não-alteração do contrato não impede a realização do interesse público
que determinou a sua celebração, pelo menos parcialmente, uma vez que não
configura óbice à execução dos 100km da via, inicialmente contratados.
Alterações qualitativas são também aquelas
decorrentes de modificações de projeto ou de especificações, para melhor
adequação técnica aos objetivos da Administração (art. 65, I, a). Objetivo da
Administração é a satisfação do interesse público.
A modificação do projeto ou especificação pode ser
necessária independentemente de o fato motivador ser superveniente ou de conhecimento
superveniente. Tal fato, comungando a opinião de ANTÔNIO CARLOS CINTRA DO
AMARAL (ob. cit., pp. 128/129), pode ser um 'fato da natureza quanto outro',
desde que extrínsecos à relação contratual, pode ser, ainda, o 'domínio de nova
tecnologia mais avançada' ou a 'disponibilidade de equipamentos tecnicamente
mais aperfeiçoados'. Além de bilaterais e qualitativas, sustentamos que tais
alterações sejam excepcionalíssimas, no sentido de que sejam realizadas quando
a outra alternativa - a rescisão do contrato, seguida de nova licitação e contratação
- significar sacrifício insuportável do interesse coletivo primário a ser
atendido pela obra ou serviço. Caso contrário, poder-se-ia estar abrindo
precedente para, de modo astucioso, contornar-se a exigência constitucional do
procedimento licitatório e a obediência ao princípio da isonomia.
Ora, se o interesse coletivo primário exigir a
revisão contratual, esta deve ser implementada pela Administração, porque
aquele é seu objetivo, ademais indisponível. Sabe-se que a rescisão contratual,
por interesse público, com vistas a nova licitação e contratação, a que já se
fez referência, traz uma série de conseqüências: a indenização de prejuízos
causados ao ex-contratado, como, por exemplo, os custos com a dispensa dos empregados
específicos para aquela obra; o pagamento ao ex-contratado do custo da
desmobilização; os pagamentos devidos pela execução do contrato anterior até a
data da rescisão; a diluição da responsabilidade pela execução da obra; e a
paralisação da obra por tempo relativamente longo - até a conclusão do novo
processo de contratação e a mobilização do novo contratado -, atrasando o atendimento
da coletividade beneficiada. Somente quando tais conseqüências forem
gravíssimas ao interesse coletivo primário é que se justificaria a revisão
contratual, qualitativa e consensual, que importe em superação dos limites econômico-financeiros
previstos nos §§ 1º e 2º da Lei 8.666/93.
Ressalve-se somente a hipótese de supressões
contratuais quantitativas, além dos limites referidos, em que se exige apenas a
consensualidade, nos termos do inciso II, do § 2.º, do art. 65, da Lei
8.666/93, incluído pela Lei 9.648/98.