quarta-feira, 29 de julho de 2015

ALTERAÇÕES QUALITATIVAS X ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS


TCU  Decisão 215/1999-Plenário. Trecho.
 
 
 
ALTERAÇÕES QUALITATIVAS X ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS
 
Neste ponto, cumpre distinguir as alterações contratuais quantitativas das qualitativas.
Considerando que o objeto do contrato distingue-se em natureza e dimensão, tem-se a natureza sempre intangível, tanto nas alterações quantitativas quanto nas qualitativas.
Não se pode transformar a aquisição de bicicletas em compra de aviões, ou a prestação de serviços de marcenaria em serralheria.
Contudo, nas modificações quantitativas, a dimensão do objeto pode ser modificada dentro dos limites previstos no § 1.º do art. 65 da Lei 8.666/93, isto é, pode ser adquirida uma quantidade de bicicletas maior do que o originalmente previsto, desde que o acréscimo, em valor, não ultrapasse 25% do valor inicial atualizado do contrato.
As alterações qualitativas, por sua vez, decorrem de modificações necessárias ou convenientes nas quantidades de obras ou serviços sem, entretanto, implicarem mudanças no objeto contratual, seja em natureza ou dimensão.
Convém distinguir dimensão do objeto de quantidade de obras ou serviços necessários à realização do objeto. Servimo-nos dos ensinamentos de EROS ROBERTO GRAU, verbis:
'(a) contrata-se a pavimentação de 100km de rodovia; se a Administração estender a pavimentação por mais 10km, estará acrescendo, quantitativamente, o seu objeto - a dimensão do objeto foi alterada;
(b) previa-se, para a realização do objeto, a execução de serviços de terraplanagem de 1000m3; se circunstâncias supervenientes importarem que se tenha de executar serviços de terraplanagem de 1200m3, estará sendo acrescida a quantidade de obras, sem que, contudo, se esteja a alterar a dimensão do objeto - a execução de mais 200m3 de serviços de terraplanagem viabiliza a execução do objeto originalmente contratado'
(Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995, p.29).
Quase sempre, as alterações qualitativas são necessárias e imprescindíveis à realização do objeto e, conseqüentemente, à realização do interesse público primário, pois que este se confunde com aquele.
As alterações qualitativas podem derivar tanto de modificações de projeto ou de especificação do objeto quanto da necessidade de acréscimo ou supressão de obras, serviços ou materiais, decorrentes de situações de fato vislumbradas após a contratação.
Conquanto não se modifique o objeto contratual, em natureza ou dimensão, é de ressaltar que a implementação de alterações qualitativas requerem, em regra, mudanças no valor original do contrato.


Enfrentemos a questão então colocada.


De início, é de ver que fere não só o Direito como também o senso comum a hipótese de alterações contratuais ilimitadas no âmbito administrativo, sobretudo as unilaterais. Os limites genéricos importam o respeito ao direito dos contratados e a interdição da fraude à licitação.


O respeito ao contratado - explicitamente exigido no art. 58, I, da Lei 8.666/93 -consubstancia-se na mantença do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, na intangibilidade do objeto e, nas alterações unilaterais, na imposição objetiva de limite máximo aos acréscimos e supressões. Evidente que, nas alterações consensuais, o contratado manifesta sua vontade, podendo rejeitar acréscimos ou supressões indesejáveis, dentro das fronteiras legais.


Nas alterações unilaterais quantitativas, previstas no art. 65, I, b, da Lei 8.666/93, a referência aos limites é expressa, uma vez que os contratos podem ser alterados unilateralmente 'quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei'. Estão eles previstos no § 1.º do referido artigo.


Assim, em relação às alterações unilaterais quantitativas (art. 65, I, b), não se tem dúvida sobre a incidência dos limites legais. Nas alterações unilaterais qualitativas, consubstanciadas no art. 65, I, “a”, da aludida Lei, não há referência expressa a esses limites, pois os contratos podem ser alterados 'quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos'.


Nas opiniões de eminentes doutrinadores, algumas até colacionadas no texto da presente consulta, como CAIO TÁCITO, MARÇAL JUSTEN FILHO e ANTONIO MARCELO DA SILVA, não se aplicam às alterações qualitativas unilaterais os limites previstos no § 1.º do art. 65 da Lei, porque a mencionada alínea “a” não lhes faz referência.


'2.1. Modificação unilateral


Genericamente previsto no art. 58-I, está condicionado por seu objetivo: a 'melhor adequação às finalidades de interesse público'.


Pode decorrer da modificação do projeto ou das especificações para, segundo o art. 65-I, 'melhor adequação técnica aos seus objetivos'.


Essa alteração encontra, contudo, barreiras e condicionantes. De um lado, nos direitos do contratado, a quem se assegura a intangibilidade do equilíbrio econômico-financeiro e da natureza do objeto do contrato, além de um limite máximo de valor para os acréscimos e supressões (art.65-§1.º)' (Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994, pp. 227/228) (grifamos).


Mesmo que se entenda que não se possa extrair diretamente do art. 65, I, “a”, essa ilação, em virtude da não-referência aos limites máximos de acréscimo e supressão de valor, a inexistência desses limites não se coaduna com o Direito, pois pode ser deduzida a partir do art. 58, I, da Lei de Licitações e Contratos, anelado pelo princípio da proporcionalidade, em virtude da observância aos direitos do contratado.


A utilização da proporção adequada nos atos da Administração é condição de legalidade deles. O atendimento ao interesse público não deve ser esteio a sacrifícios desnecessários do interesse privado. É o que reza o princípio da proporcionalidade, que proíbe os excessos da Administração.


CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO esclarece: 'as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas'


(ob. cit., p. 67).


A hipótese de supressão ilimitada no valor contratual é que nos leva a compreender melhor os excessos que podem advir da inexistência dessas barreiras.


Imagine-se, como exemplo, a disponibilidade de nova tecnologia que pudesse reduzir os custos de determinada obra em 80%. Seria possível à Administração impor ao contratado, unilateralmente, a obrigação de ele adotá-la na execução da obra, reduzindo o valor inicial do contrato na mesma proporção, sem considerar a manifestação de sua vontade ou recusa?


Evidente que se trata de uma supressão de valor contratual desarrazoada. Mas o que seria razoável? 70%? 60%? 50% .... 25%?. A fixação desse limite, pensamos, inclui-se na discricionariedade do legislador.


Cumpre, aqui, esclarecer que, a fim de não submeter o contratado a alteração contratual unilateral que não seja razoável ou proporcional, a opção que restaria à Administração seria a de rescindir unilateralmente o contrato, nos termos do art. 78, XII, da Lei n º 8.666/93, e proceder a nova licitação e contratar o novo objeto.


Referidos limites, em nossa opinião, têm de ser claros, objetivos e preestabelecidos em lei, pois é a partir deles que o possível contratado dimensiona os riscos que deve suportar, na hipótese de uma alteração unilateral imposta pela Administração.


Acreditamos até que poucos contratariam com a Administração se não houvesse limites objetivos, claros e fixados em lei a esse poder de alteração unilateral a ela concedido.


Chamamos mais uma vez a esclarecedora orientação de CARLOS ARI SUNDFELD:


'Ao contratar com a Administração, a empresa privada já sabe que, até certo limite, pode ser constrangida a realizar quantidade de prestações superior à inicialmente estipulada. Quando participa de licitação e, especialmente, quando trava um contrato, deve se preparar para tal eventualidade' ('Contratos Administrativos - Acréscimos de obras e serviços - Alteração', p. 153).


Por isso, alinhamo-nos à tese de que as alterações unilaterais qualitativas estão sujeitas aos mesmos limites escolhidos pelo legislador para as alterações unilaterais quantitativas, previstos no art. 65, § 1.º, da Lei 8.666/93, não obstante a falta de referência a eles no art. 65, I, “a”.


Fundamentamo-nos na necessidade de previsão de limites objetivos e claros em Lei, no princípio da proporcionalidade e no respeito aos direitos do contratado, prescrito no art. 58, I, da Lei 8.666/93.


Note-se que a supressão, por parte da Administração, de obras, serviços ou compras, que excedam os limites prescritos no art. 65, § 1.º, é também causa de rescisão do contrato, por inexecução pela Administração, conforme prevê o art. 78, XIII, da Lei 8.666/93. O que reforça a nossa tese, de observância a esses limites nas alterações unilaterais, sejam quantitativas ou qualitativas.


Embora nossa exemplificação tenha-se baseado na hipótese de supressão de serviços, porque é mais evidente a onerosidade ao contratado, cabe ressaltar que a não-imposição de barreiras aos acréscimos unilaterais pode também ser fonte de ônus desnecessário ao contratado.


Vejam-se as palavras de CARLOS ARI SUNDFELD sobre o assunto, in verbis:


'Se a Administração pudesse impor ao particular a ampliação desmesurada de suas obrigações, mesmo com a garantia de incremento da remuneração, poderia, em muitos casos, inviabilizar o cumprimento do contrato. É que, de um lado, a empresa pode não ter capacidade operacional para atender ao aumento de suas obrigações; de outro, a realização das prestações acrescidas, pelo mesmo preço unitário previsto no contrato, pode resultar excessivamente onerosa' ('Contratos Administrativos - Acréscimos de obras e serviços - Alteração', p. 153).


VI


Isso não significa, entretanto, que, na realização do interesse público, a Administração não possa, em caráter excepcional, ultrapassar referidos limites.


Em nossa opinião, poderia fazê-lo, em situações excepcionalíssimas, na hipótese de alterações qualitativas, revisando, não unilateralmente, mas consensualmente, as obrigações e o valor do contrato.


Novamente nos socorremos das lições de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, in verbis:


'Embora a lei não o diga, entendemos que, por mútuo acordo, caberia ainda, modificação efetuada acima dos limites previstos no § 1.º do art. 65, se ocorrer verdadeira e induvidosamente alguma situação anômala, excepcionalíssima, ou então perante as chamadas 'sujeições imprevistas'; isto é: quando dificuldades naturais insuspeitadas se antepõem à realização da obra ou serviço, exigindo tal acréscimo' (ob.cit, p. 407).


Tais alterações devem ser efetuadas por acordo mútuo - bilaterais -, pois dessa maneira evita-se a excessiva onerosidade nas obrigações do contratado, vez que o novo pacto passa a depender da manifestação de sua vontade.


Além de consensuais, sustentamos que tais alterações devem ser necessariamente qualitativas. Estas, diferentemente das quantitativas - que não configuram embaraços à execução do objeto como inicialmente avençado -, ou são imprescindíveis ou viabilizam a realização do objeto.


Sem a implementação das modificações qualitativas não há objeto e, por conseguinte, não há a satisfação do interesse público primário que determinou a celebração do contrato. Relembrando o exemplo de alterações qualitativas que aduzimos, verifica-se que, sem o acréscimo dos serviços de terraplanagem, não seria possível a realização dos 100km de pavimentação.


Distinta é a situação, quando a modificação contratual visa a aumentar a extensão da via de 100 para 150km - alteração quantitativa. Nesse caso, a não-alteração do contrato não impede a realização do interesse público que determinou a sua celebração, pelo menos parcialmente, uma vez que não configura óbice à execução dos 100km da via, inicialmente contratados.


Alterações qualitativas são também aquelas decorrentes de modificações de projeto ou de especificações, para melhor adequação técnica aos objetivos da Administração (art. 65, I, a). Objetivo da Administração é a satisfação do interesse público.


A modificação do projeto ou especificação pode ser necessária independentemente de o fato motivador ser superveniente ou de conhecimento superveniente. Tal fato, comungando a opinião de ANTÔNIO CARLOS CINTRA DO AMARAL (ob. cit., pp. 128/129), pode ser um 'fato da natureza quanto outro', desde que extrínsecos à relação contratual, pode ser, ainda, o 'domínio de nova tecnologia mais avançada' ou a 'disponibilidade de equipamentos tecnicamente mais aperfeiçoados'. Além de bilaterais e qualitativas, sustentamos que tais alterações sejam excepcionalíssimas, no sentido de que sejam realizadas quando a outra alternativa - a rescisão do contrato, seguida de nova licitação e contratação - significar sacrifício insuportável do interesse coletivo primário a ser atendido pela obra ou serviço. Caso contrário, poder-se-ia estar abrindo precedente para, de modo astucioso, contornar-se a exigência constitucional do procedimento licitatório e a obediência ao princípio da isonomia.


Ora, se o interesse coletivo primário exigir a revisão contratual, esta deve ser implementada pela Administração, porque aquele é seu objetivo, ademais indisponível. Sabe-se que a rescisão contratual, por interesse público, com vistas a nova licitação e contratação, a que já se fez referência, traz uma série de conseqüências: a indenização de prejuízos causados ao ex-contratado, como, por exemplo, os custos com a dispensa dos empregados específicos para aquela obra; o pagamento ao ex-contratado do custo da desmobilização; os pagamentos devidos pela execução do contrato anterior até a data da rescisão; a diluição da responsabilidade pela execução da obra; e a paralisação da obra por tempo relativamente longo - até a conclusão do novo processo de contratação e a mobilização do novo contratado -, atrasando o atendimento da coletividade beneficiada. Somente quando tais conseqüências forem gravíssimas ao interesse coletivo primário é que se justificaria a revisão contratual, qualitativa e consensual, que importe em superação dos limites econômico-financeiros previstos nos §§ 1º e 2º da Lei 8.666/93.


Ressalve-se somente a hipótese de supressões contratuais quantitativas, além dos limites referidos, em que se exige apenas a consensualidade, nos termos do inciso II, do § 2.º, do art. 65, da Lei 8.666/93, incluído pela Lei 9.648/98.