Marçal Justen Filho*
As reiteradas notícias sobre corrupção em contratações
administrativas não conduziram à eliminação de práticas reprováveis no setor.
Ao que parece, as providências repressivas não têm sido suficientes para
colocar um ponto final nesses desvios.
Seria uma ingenuidade incompatível com a realidade dos
fatos supor que esses abusos somente ocorrem em contratações promovidas perante
determinados órgãos ou entidades. Por isso, é necessária atenção e exame das
circunstâncias dos casos concretos para identificar os abusos – que, como é
evidente, são sempre disfarçados em soluções orientadas a promover o “bem
público”.
Adiante estão arroladas situações que usualmente
envolvem práticas abusivas. É evidente que não se trata de presunção absoluta,
mas os eventos abaixo narrados são muito comumente relacionados com violação à
ordem jurídica.
1) Requisitos de
habilitação excessivos, não justificados de modo claro e simples: O modo mais simples de
direcionar indevidamente uma licitação consiste em adotar requisitos de
habilitação que comprometam a universalidade da disputa. Isso não equivale a
reconhecer a invalidade de requisitos de habilitação severos. Há casos em que é
necessário exigir que o licitante comprove experiência anterior diferenciada.
Mas isso somente é admissível quando o objeto do contrato for efetivamente
complexo, difícil de ser executado. Em tais casos, a necessidade de requisitos
de habilitação severos é evidente e pode ser justificada facilmente. Sempre que
o objeto for relativamente simples ou envolver atividades destituídas de
complexidade, a exigência de requisitos de participação severos é um forte indício
de práticas reprováveis. Em tais casos, caberá à Administração expor as razões
da exigência, o que envolverá raciocínio técnico. A recusa de justificativa, a
dificuldade em fazê-lo ou a adoção de cláusulas genéricas (“supremacia do
interesse público”) são fortíssimos indícios de desvios reprováveis.
2) Exigências contratuais
excessivas, desnecessárias para a obtenção de um resultado satisfatório: Raciocínio similar se
verifica nos casos em que o edital contempla requisitos contratuais
desnecessários. São aqueles casos, por exemplo, de execução da prestação
contratual em prazos exíguos ou em condições muito problemáticas, sem que isso
seja necessário para satisfazer as necessidades da Administração. Essa hipótese
compreende, inclusive, critérios técnicos de julgamento. Um exemplo típico é a
previsão de classificação mais vantajosa para a proposta que oferecer a entrega
da prestação no mesmo dia da formalização do contrato. Essa solução, na maioria
das vezes, é inútil, eis que é indiferente para a Administração receber o
objeto no mesmo dia da assinatura do contrato.
3) Realização de
diligências “anômalas”, sem observância de publicidade: uma prática altamente
reprovável é a realização pela Administração de diligências “estranhas”,
“incomuns” e excepcionais, no curso da licitação, sem prévia comunicação às
partes. Até se pode admitir que, em situações muito peculiares, a divulgação da
realização da diligência possa comprometer a sua eficácia. Mas a regra é
distinta. Muito menos cabível é a realização de diligências sem o
acompanhamento e o controle das partes. Um caso evidente é a diligência secreta
que conduz à conclusão de que o licitante preenche requisitos de participação
objeto de impugnação por outra parte. A conduta administrativa, que impede que
o impugnante acompanhe a diligência, é altamente suspeita.
4) A realização de
“testes” secretos, que conduzem à reprovação da prestação oferecida ou
executada por um dos licitantes: é evidente que a prestação desconforme com as
exigências do edital deve ser reprovada. Mas não é incomum que a recusa do
particular em concordar com exigências ilícitas resulte na reprovação do
produto por ele ofertado. Em tais casos, a Administração providencia um teste,
usualmente aplicado sem observância do princípio da publicidade, para
considerar que o objeto oferecido apresenta defeitos. Como decorrência, a
proposta do licitante é desclassificada. Essa prática se consuma muito mais
comumente depois da conclusão do certame. O licitante vencedor é convocado para
ofertar vantagens indevidas a algum agente público. Em caso de recusa,
produz-se um teste a destempo e se promove a sua exclusão.
5) Desfazimento do
certame mediante invocação de razões implausíveis: outra alternativa para
retaliação contra o licitante que se recusa a conceder vantagens indevidas é o
desfazimento do certame. Pode ocorrer ou a anulação ou a revogação. Em ambos os
casos, são referidas razões pouco usuais, que envolvem fatos controvertidos ou
destituídos de consistência.
6) A recusa pela
Administração do cumprimento fiel do contrato, impondo sérios danos ao
particular: um caso emblemático é a ausência de adimplemento do contrato pela
Administração, depois de o particular ter executado aquilo que lhe cabia. Em
muitas hipóteses, a Administração nem mesmo invoca alguma razão jurídica. Pura
e simplesmente deixa de executar a prestação que lhe cabe. Em outros casos,
atrasa o recebimento formal do objeto, embora passe a dele usufruir
imediatamente. Enfim, há casos em que a Administração alude ao art. 78, inc.
XV, da Lei 8.666 (que prevê a possibilidade de rescisão do contrato em caso de
atraso superior a noventa dias), tal como se o prazo contratual fosse
irrelevante. Em todas essas situações, é muito provável existir uma tentativa
de constranger o particular a oferecer vantagens indevidas para agentes
públicos.
A Administração Pública detém uma pluralidade de
competências anômalas, que lhe são atribuídas para melhor satisfazer os
interesses coletivos. Não é admissível que tais poderes sejam utilizados para
viabilizar a corrupção. O exercício desses poderes anômalos somente é válido
quando realizado de modo transparente, com observância do princípio da
publicidade e mediante a demonstração do inequívoco atendimento aos interesses
públicos. Condutas sigilosas, destituídas de fundamentação satisfatória,
consumadas de modo incompatível com as práticas usuais e sem respeito ao
princípio da boa-fé devem ser reprovadas e invalidadas de modo imediato,
especialmente porque há grande probabilidade de práticas relacionadas à corrupção.
*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela
PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal
Gazeta do Povo.
JUSTEN FILHO, Marçal. Seis indícios de corrupção nas contratações
administrativas. Disponível em: < http://justenfilho.com.br/tags/contratacao-administrativa/>.
Acesso em: 26 dez. 2016.