quarta-feira, 19 de abril de 2023

É irregular a aceitação de cartas de fiança fidejussória, de natureza não bancária, como garantia de contrato administrativo

 

É irregular a aceitação de cartas de fiança fidejussória, de natureza não bancária, como garantia de contrato administrativo, uma vez que não correspondem ao instrumento de fiança bancária  (art. 56, § 1º, inciso III, da Lei 8.666/1993 e art. 96, § 1º, inciso III, da Lei 14.133/2021), emitida por banco ou instituição financeira autorizada a operar pelo Banco Central do Brasil.

Representação formulada ao TCU apontou possível irregularidade quanto ao fato de órgãos da Administração Pública Federal estarem admitindo garantias de execução contratual constituídas por “cartas de fiança” emitidas por empresas não autorizadas pelo Banco Central do Brasil a operar no ramo bancário, em inobservância ao disposto no art. 56 da Lei 8.666/1993. Preliminarmente, a unidade técnica especializada levantou doze empresas que supostamente comercializam “cartas de fiança fidejussórias”. Em seguida, diligenciou as prefeituras dos sete municípios em que estão sediadas, a fim de obter as notas fiscais por elas emitidas desde 2016 e, a partir daí, identificar os adquirentes das fianças. Depois, mediante cruzamento com banco de dados de contratações públicas federais, identificou aquelas empresas adquirentes de fianças que já foram contratadas por órgãos da Administração, tendo como critérios o valor contratual acima de R$ 1 milhão e a data de assinatura a contar de 1º/8/2017, de modo a abranger contratos talvez ainda vigentes em função de prorrogações. Como resultado, foi obtida amostra de 71 contratos com suspeita de terem sido garantidos por “cartas de fiança fidejussórias”, espalhados entre 48 órgãos públicos federais. O passo seguinte foi diligenciar os órgãos contratantes, com vistas a confirmar a aceitação das fianças não bancárias. De acordo com a unidade instrutiva, restaram confirmados “nove contratos administrativos firmados por oito órgãos públicos federais nos quais foram indevidamente aceitas ‘cartas de fiança fidejussória’, sendo que pelo menos sete desses contratos já estão com a vigência expirada.”. Com relação a quatro contratos, sua proposta foi de apenas dar ciência da irregularidade aos órgãos contratantes, tendo em conta que já não estariam mais vigentes, além da “baixa materialidade” das fianças admitidas. Quanto a outros três contratos, considerando que a falha na aceitação das “cartas de fiança fidejussórias” fora percebida e regularizada logo após a contratação ou nas renovações, a unidade técnica não propôs encaminhamento, ressalvando o contrato, já expirado, do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados, gerido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), cuja “carta de fiança fidejussória” fora substituída por seguro-garantia nas renovações, passando a se adequar à lei. Como não ficou claro se a entidade exigira tal regularização, a proposta da unidade técnica foi de cientificá-la do “erro inicial”. Especialmente a respeito dos dois contratos da Universidade Federal Fluminense, os quais ainda poderiam estar vigentes, a proposta da unidade instrutiva foi de dar ciência da irregularidade acerca da admissão de garantias por “cartas de fianças fidejussórias”, ponderando, no entanto, a “baixa materialidade”, além do que a entidade se comprometera a regularizar a situação. Em seu voto, o relator deixou assente não haver dúvida quanto à inidoneidade das “cartas de fiança fidejussória” como garantia de contratos administrativos, uma vez que o art. 56, § 1º, da Lei 8.666/1993 só legitima o fornecimento de garantias na forma de “caução (em dinheiro ou títulos públicos), seguro-garantia ou fiança bancária (grifo no original), e que essa exigência fora repetida no art. 96, § 1º, da Lei 14.133/2021, cujo inciso III reforça que deve ser a “fiança bancária emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil (grifos no original). Portanto, as “cartas de fiança fidejussória” concedidas por estabelecimentos não legalmente autorizados a atuar como bancos “não se constituem, evidentemente, de fianças bancárias, se fazendo inaptas à garantia de contratos públicos”. Segundo o relator, são “estabelecimentos fora do sistema financeiro, sem regulamentação específica e sobre os quais não há nenhum controle do poder público acerca da sua gestão econômica e capacidade de honrar compromissos, configurando-se alto risco de que as garantias por eles emitidas se tornem inúteis”. Diferentemente da unidade técnica, ponderou que a materialidade financeira “não pode ser critério para pôr a salvo desde logo” a responsabilidade das empresas emitentes das “cartas de fiança fidejussória” e das contratadas, uma vez que o enfoque, para ele, “não é de reparação de dano, mas de repreensão à fraude”. Nesse sentido, sustentou que as empresas que atuaram na emissão e no oferecimento indevidos de “cartas de fiança fidejussória”, de natureza não bancária, para a garantia de contratos públicos, sem validade para tanto, com infringência do art. 56, § 1º, da Lei 8.666/1993, deveriam ser ouvidas para fins de eventual aplicação da sanção prevista no art. 46 da Lei 8.443/1992, no que foi acompanhado pelos demais ministros. Também acolhendo proposição do relator, o Plenário decidiu dar ciência aos órgãos contratantes identificados nos autos, com vistas à prevenção de outras ocorrências semelhantes, que a aceitação de “cartas de fiança” dessa natureza nos seus respectivos contratos “afronta o disposto no art. 56, § 1º, da Lei 8.666/1993 e no art. 96, § 1º, da Lei 14.133/2021, visto que tais ‘cartas de fiança fidejussória’ não correspondem ao instrumento de fiança bancária”, alertando-os ainda de que “a reincidência na irregularidade sujeita os responsáveis à possibilidade de apenação pelo TCU”.

Acórdão 597/2023 Plenário, Representação, Relator Ministro Vital do Rêgo.