É irregular a aceitação de cartas de
fiança fidejussória, de natureza não bancária, como garantia de contrato
administrativo, uma vez que não correspondem ao instrumento de fiança bancária (art. 56, § 1º, inciso III, da Lei
8.666/1993 e art. 96, § 1º, inciso III, da Lei 14.133/2021), emitida por banco
ou instituição financeira autorizada a operar pelo Banco Central do Brasil.
Representação
formulada ao TCU apontou possível irregularidade quanto ao fato de órgãos da
Administração Pública Federal estarem admitindo garantias de execução
contratual constituídas por “cartas de fiança” emitidas por empresas não
autorizadas pelo Banco Central do Brasil a operar no ramo bancário, em inobservância ao disposto no art. 56 da
Lei 8.666/1993. Preliminarmente, a unidade técnica especializada
levantou doze empresas que supostamente comercializam “cartas de fiança
fidejussórias”. Em seguida, diligenciou as prefeituras dos sete municípios em
que estão sediadas, a fim de obter as notas fiscais por elas emitidas desde
2016 e, a partir daí, identificar os adquirentes das fianças. Depois, mediante
cruzamento com banco de dados de contratações públicas federais, identificou
aquelas empresas adquirentes de fianças que já foram contratadas por órgãos da
Administração, tendo como critérios o valor contratual acima de R$ 1 milhão e a
data de assinatura a contar de 1º/8/2017, de modo a abranger contratos talvez
ainda vigentes em função de prorrogações. Como resultado, foi obtida amostra de
71 contratos com suspeita de terem sido garantidos por “cartas de fiança
fidejussórias”, espalhados entre 48 órgãos públicos federais. O passo seguinte
foi diligenciar os órgãos contratantes, com vistas a confirmar a aceitação das fianças
não bancárias. De acordo com a unidade instrutiva, restaram confirmados “nove contratos administrativos firmados por
oito órgãos públicos federais nos quais foram indevidamente aceitas ‘cartas de
fiança fidejussória’, sendo que pelo menos sete desses contratos já estão com a
vigência expirada.”. Com relação a quatro contratos, sua proposta foi de
apenas dar ciência da irregularidade aos órgãos contratantes, tendo em conta
que já não estariam mais vigentes, além da “baixa materialidade” das fianças
admitidas. Quanto a outros três contratos, considerando que a falha na
aceitação das “cartas de fiança fidejussórias” fora percebida e regularizada
logo após a contratação ou nas renovações, a unidade técnica não propôs
encaminhamento, ressalvando o contrato, já expirado, do Hospital Universitário
da Universidade Federal da Grande Dourados, gerido pela Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares (EBSERH), cuja “carta de fiança fidejussória” fora
substituída por seguro-garantia nas renovações, passando a se adequar à lei.
Como não ficou claro se a entidade exigira tal regularização, a proposta da
unidade técnica foi de cientificá-la do “erro
inicial”. Especialmente a respeito dos dois contratos da Universidade
Federal Fluminense, os quais ainda poderiam estar vigentes, a proposta da
unidade instrutiva foi de dar ciência da irregularidade acerca da admissão de
garantias por “cartas de fianças fidejussórias”, ponderando, no entanto, a
“baixa materialidade”, além do que a entidade se comprometera a regularizar a
situação. Em seu voto, o relator deixou assente não haver dúvida quanto à
inidoneidade das “cartas de fiança fidejussória” como garantia de contratos
administrativos, uma vez que o art. 56, § 1º, da Lei 8.666/1993 só legitima o
fornecimento de garantias na forma de “caução
(em dinheiro ou títulos públicos), seguro-garantia ou fiança bancária” (grifo no original), e
que essa exigência fora repetida no art. 96, § 1º, da Lei 14.133/2021, cujo
inciso III reforça que deve ser a “fiança
bancária emitida por banco ou
instituição financeira devidamente
autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil” (grifos no
original). Portanto, as “cartas de fiança fidejussória” concedidas por
estabelecimentos não legalmente autorizados a atuar como bancos “não se constituem, evidentemente, de
fianças bancárias, se fazendo inaptas à garantia de contratos públicos”.
Segundo o relator, são “estabelecimentos
fora do sistema financeiro, sem regulamentação específica e sobre os quais não
há nenhum controle do poder público acerca da sua gestão econômica e capacidade
de honrar compromissos, configurando-se alto risco de que as garantias por eles
emitidas se tornem inúteis”. Diferentemente da unidade técnica, ponderou
que a materialidade financeira “não pode
ser critério para pôr a salvo desde logo” a responsabilidade das empresas
emitentes das “cartas de fiança fidejussória” e das contratadas, uma vez que o
enfoque, para ele, “não é de reparação de
dano, mas de repreensão à fraude”. Nesse sentido, sustentou que as empresas
que atuaram na emissão e no oferecimento indevidos de “cartas de fiança
fidejussória”, de natureza não bancária, para a garantia de contratos públicos,
sem validade para tanto, com infringência do art. 56, § 1º, da Lei 8.666/1993,
deveriam ser ouvidas para fins de eventual aplicação da sanção prevista no art.
46 da Lei 8.443/1992, no que foi acompanhado pelos demais ministros. Também
acolhendo proposição do relator, o Plenário decidiu dar ciência aos órgãos
contratantes identificados nos autos, com vistas à prevenção de outras
ocorrências semelhantes, que a aceitação de “cartas de fiança” dessa natureza
nos seus respectivos contratos “afronta o
disposto no art. 56, § 1º, da Lei 8.666/1993 e no art. 96, § 1º, da Lei
14.133/2021, visto que tais ‘cartas de fiança fidejussória’ não correspondem ao
instrumento de fiança bancária”,
alertando-os ainda de que “a
reincidência na irregularidade sujeita os responsáveis à possibilidade de
apenação pelo TCU”.
Acórdão
597/2023 Plenário, Representação, Relator Ministro Vital do Rêgo.