quinta-feira, 11 de abril de 2024

A transferência de titularidade da concessão pública, em decorrência da alienação do controle acionário da empresa concessionária, sem a observância mínima dos requisitos de habilitação presentes no edital da licitação que deu origem à concessão, ainda que mitigados de forma fundamentada, viola o art. 27, § 1º, incisos I e II, da Lei 8.987/1995, além de poder configurar burla aos princípios da impessoalidade e do julgamento objetivo.

 


Representação formulada ao TCU apontou possíveis irregularidades na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) relacionadas ao contrato de concessão da BR-393/RJ, trecho entre Além Paraíba-MG e Volta Redonda-RJ, celebrado em 26/3/2008 e decorrente do Leilão-ANTT 7/2007, no âmbito do qual estaria a concessionária “incumbida da exploração da infraestrutura rodoviária, da prestação de serviços públicos e da execução de obras, em observância ao Programa de Exploração da Rodovia (PER), sendo remunerada mediante cobrança de pedágio”. Conforme a representante, em 12/9/2018, a empresa controladora da concessionária protocolara, na ANTT, requerimento de anuência prévia (art. 27 da Lei 8.987/1995) à cessão da totalidade das ações representativas do capital social da concessionária para duas outras empresas, sob a alegação de ter sido afetada pela conjuntura econômica do país à época. Por meio da Deliberação-ANTT 820, de 10/10/2018, a agência reguladora anuiu à pretendida transferência de controle acionário, decisão amparada pela Nota Técnica 69/2018/GEREF/SUINF e pelo Memorando 961/2018/SUINF, ambos datados de 9/10/2018. A autora da representação identificou indício de irregularidade grave na sobredita Deliberação 820/2018, consubstanciado na inobservância dos requisitos exigíveis de qualificação econômica (art. 27 da Lei 8.987/1995; arts. 29 e 30 da Lei 10.233/2001; itens 3.28 e 3.29 do Edital 7/2007; item 16.52 do Contrato de Concessão), em afronta aos princípios da impessoalidade, da moralidade e da vinculação ao instrumento convocatório (art. 37, caput, da Constituição Federal; art. 2º, caput, da Lei 9.784/1999). Para fim de apuração, foi realizada a oitiva da ANTT e da concessionária, bem como a audiência dos servidores e diretores da agência que contribuíram para a autorização da transferência de controle acionário. Em seu voto, ao apreciar as justificativas trazidas aos autos, o relator discorreu, preliminarmente, acerca da necessidade de observância, por parte de empresas que pleiteiam a assunção de contratos de concessão já existentes, das condições previstas no edital licitatório daquela concessão. Segundo ele, “é consabido que os contratos de concessão de serviços públicos, que pactuam relações de longo prazo entre agentes privados e o poder concedente, são incompletos pela sua própria natureza, dado que seria impossível exaurir ex ante as hipotéticas situações a serem vivenciadas no decorrer da concessão”, cabendo ao ente regulador acompanhar o desempenho da concessionária em face da evolução do mercado e das condições fáticas, buscando o atingimento dos objetivos do negócio jurídico. Por sua vez, acrescentou o relator, tem o TCU admitido, no exercício de seu papel de controlador de segunda ordem, alterações motivadas de cláusulas inicialmente pactuadas, desde que mantido o objeto da concessão e que seja demonstrado, pelas agências reguladoras, o atendimento dos pressupostos legais. Ainda de acordo com o relator, no que concerne à transferência de controle societário da concessionária, a Lei 8.987/1995 (Lei de Concessões), posteriormente alterada pelas Leis 11.196/2005 e 13.907/2015, prevê tal possibilidade, desde que observados certos requisitos, transcrevendo o art. 27 da mencionada norma: “A transferência de concessão ou do controle societário da concessionária sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão. § 1º Para fins de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo, o pretendente deverá: I - atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e II - comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.” (grifos do relator). Ademais, prosseguiu o condutor do processo, a Lei 10.233/2001 (Lei de criação da ANTT) elenca critérios para a transferência de titularidade de concessões rodoviárias: “Art. 29. Somente poderão obter autorização, concessão ou permissão para prestação de serviços e para exploração das infra-estruturas de transporte doméstico pelos meios aquaviário e terrestre as empresas ou entidades constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, e que atendam aos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pela respectiva Agência. Art. 30. É permitida a transferência da titularidade das outorgas de concessão ou permissão, preservando-se seu objeto e as condições contratuais, desde que o novo titular atenda aos requisitos a que se refere o art. 29.” (grifos do relator). Concluiu assim que os aludidos diplomas legais “preveem, para os postulantes a assumirem o controle da concessão, a obrigatoriedade de atendimento de condicionantes técnicas, econômicas, jurídicas e fiscais estabelecidas pela Agência, bem como o cumprimento das cláusulas do contrato em vigor”. Na sequência, o relator ressaltou o argumento aduzido pelos gestores ouvidos em audiência, no sentido de que “não há, nos dispositivos elencados, a previsão de que as empresas candidatas atendam necessariamente aos mesmos requisitos previstos no instrumento convocatório original da concessão”, ponderando, no entanto, que, ao estabelecer as exigências para a transferência da titularidade da concessão, “não pode a Agência alegar discricionariedade para desviar-se das amarras previstas no arcabouço normativo”, isso porque a legislação “dispõe expressamente a necessidade de licitação prévia à concessão pública, com ferramentas para assegurar a publicidade dos atos e a participação isonômica dos interessados (art. 14 da Lei 8.987/1995)”. Por conseguinte, “a transferência de titularidade da concessão sem a observância mínima dos requisitos originais, ainda que mitigados de forma fundamentada, pode se configurar como burla aos princípios da impessoalidade e do julgamento objetivo”. Retomando o caso concreto, o relator pontuou que o item 2.28 do Edital 7/2007, que deu origem ao contrato de concessão, previa a necessidade de comprovação, pelos proponentes, de um patrimônio líquido (PL) igual ou superior a R$ 81.852.500,00, a ser mantido durante a vigência contratual, todavia, a nova empresa controladora, que passou a ter 99,99% das ações da concessionária, possuía um PL de apenas R$ 10.000,00, correspondente a tão somente 0,01% do mínimo exigido. Para o relator, não foram apresentadas justificativas plausíveis pelos responsáveis para a desconsideração desse requisito primário de habilitação financeira da empresa controladora na análise que precedeu a transferência da concessão, mormente quando se constatava que a então controladora “já vinha com baixo nível de execução do PER, encontrando-se ainda o contrato antes da metade da vigência, por ocasião do pleito de transferência”. O relator também chamou a atenção para o fato de que a nova controladora tinha como atividades econômicas a gestão empresarial e o comércio de equipamentos de informática, desenvolvimento de programas de computador, suporte em informática, atividades de intermediação e gerenciamento de serviços em geral, holding de instituições não financeiras, correspondente de instituições financeiras, locação de automóveis, transporte rodoviário de cargas, teleatendimento, cobranças e representação comercial, ao passo que a outra empresa acionista tinha como atividade econômica principal o aluguel de imóveis próprios. Portanto, arrematou o relator, “atuavam em setores sem qualquer correlação com a gestão de ativos de infraestrutura rodoviária”. Sobre a análise realizada pelos técnicos da Superintendência de Exploração da Infraestrutura Rodoviária-SUINF/ANTT, além da “irregularidade capital” de eles não terem assinalado a falta de lastro financeiro da proponente, na forma de patrimônio líquido minimamente compatível com a concessão, o relator frisou que as empresas proponentes configuravam-se como “prestadoras de serviços administrativos, possuindo registro de poucos funcionários em seus quadros (entre 1 e 4)”, razão pela qual “a análise de aptidão financeira a partir do exame das demonstrações financeiras, do cálculo de índices de endividamento etc., mostra-se totalmente inadequada para o fim a que se propunha”. Em consequência, manifestou-se no sentido de que a Nota Técnica 69/2018/GEREF/SUINF violara o disposto nos arts. 29 e 30 da Lei 10.233/2001, ao permitir que empresas que flagrantemente não atendiam aos requisitos de qualificação econômica assumissem o controle da concessão da BR-393/RJ, tendo o referido documento sido elemento essencial para o julgamento pela Diretoria da ANTT, com a consequente consumação da transferência irregular de controle acionário da concessionária. Acerca das responsabilidades, por entender configurada a irregularidade dos signatários daquela nota técnica, propôs a aplicação de multa individual, no valor de R$ 30.000,00. Quanto ao responsável pela aprovação da Deliberação 820/2018, particularmente pela “forma inoportuna pela qual o processo de anuência à transferência de controle da concessionária foi inserido em apreciação extrapauta na 784ª Reunião da Diretoria da ANTT, no próprio dia da sessão (10/10/2018), além de ter designado relator ad hoc, contrariando normativos da Agência, o que dificultou escrutínio mais aprofundado do caso”, considerou cabível a aplicação de multa no montante de R$ 50.000,00. Com relação ao autor do voto que aprovara a Deliberação 820/2018, cujo resultado prático fora a transferência irregular de controle acionário da concessionária, ante a falta de justificativa plausível, considerou cabível aplicar-lhe multa no valor de R$ 50.000,00. Em acréscimo, face à gravidade da sua conduta, sustentou que este último responsável deveria ficar inabilitado para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública, pelo prazo de cinco anos, com fundamento no art. 60 da Lei 8.443/1992 (Lei Orgânica do TCU), no que foi inteiramente acompanhado pelos demais ministros.

Acórdão 304/2024 Plenário, Representação, Relator Ministro Antonio Anastasia.