Representação
formulada ao TCU apontou possíveis irregularidades na Agência Nacional de
Transportes Terrestres (ANTT) relacionadas ao contrato de concessão da
BR-393/RJ, trecho entre Além Paraíba-MG e Volta Redonda-RJ, celebrado em
26/3/2008 e decorrente do Leilão-ANTT 7/2007, no âmbito do qual estaria a
concessionária “incumbida da exploração
da infraestrutura rodoviária, da prestação de serviços públicos e da execução
de obras, em observância ao Programa de Exploração da Rodovia (PER), sendo
remunerada mediante cobrança de pedágio”. Conforme a representante, em
12/9/2018, a empresa controladora da concessionária protocolara, na ANTT,
requerimento de anuência prévia (art. 27 da Lei 8.987/1995) à cessão da
totalidade das ações representativas do capital social da concessionária para
duas outras empresas, sob a alegação de ter sido afetada pela conjuntura
econômica do país à época. Por meio da Deliberação-ANTT 820, de 10/10/2018, a
agência reguladora anuiu à pretendida transferência de controle acionário,
decisão amparada pela Nota Técnica 69/2018/GEREF/SUINF e pelo Memorando
961/2018/SUINF, ambos datados de 9/10/2018. A autora da representação
identificou indício de irregularidade grave na sobredita Deliberação 820/2018,
consubstanciado na inobservância dos requisitos exigíveis
de qualificação econômica (art. 27 da Lei 8.987/1995; arts. 29 e 30 da Lei
10.233/2001; itens 3.28 e 3.29 do Edital 7/2007; item 16.52 do Contrato de
Concessão), em afronta aos princípios da impessoalidade, da moralidade e da
vinculação ao instrumento convocatório (art. 37, caput, da Constituição Federal; art. 2º, caput, da Lei 9.784/1999). Para fim de apuração, foi realizada a
oitiva da ANTT e da concessionária, bem como a audiência dos servidores e
diretores da agência que contribuíram para a autorização da transferência de
controle acionário. Em seu voto, ao apreciar as justificativas trazidas aos
autos, o relator discorreu, preliminarmente, acerca da necessidade de observância,
por parte de empresas que pleiteiam a assunção de contratos de concessão já
existentes, das condições previstas no edital licitatório daquela concessão.
Segundo ele, “é consabido que os
contratos de concessão de serviços públicos, que pactuam relações de longo
prazo entre agentes privados e o poder concedente, são incompletos pela sua
própria natureza, dado que seria impossível exaurir ex ante as hipotéticas
situações a serem vivenciadas no decorrer da concessão”, cabendo ao ente
regulador acompanhar o desempenho da concessionária em face da evolução do
mercado e das condições fáticas, buscando o atingimento dos objetivos do
negócio jurídico. Por sua vez, acrescentou o relator, tem o TCU admitido, no
exercício de seu papel de controlador de segunda ordem, alterações motivadas de
cláusulas inicialmente pactuadas, desde que mantido o objeto da concessão e que
seja demonstrado, pelas agências reguladoras, o atendimento dos pressupostos
legais. Ainda de acordo com o relator, no que concerne à transferência de
controle societário da concessionária, a Lei 8.987/1995 (Lei de Concessões),
posteriormente alterada pelas Leis 11.196/2005 e 13.907/2015, prevê tal
possibilidade, desde que observados certos requisitos, transcrevendo o art. 27
da mencionada norma: “A transferência de
concessão ou do controle societário da concessionária sem prévia anuência do
poder concedente implicará a caducidade da concessão. § 1º Para fins de
obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo, o pretendente deverá: I
- atender às exigências de capacidade
técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à
assunção do serviço; e II - comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.” (grifos do
relator). Ademais, prosseguiu o condutor do processo, a Lei 10.233/2001 (Lei de
criação da ANTT) elenca critérios para a transferência de titularidade de
concessões rodoviárias: “Art. 29. Somente
poderão obter autorização, concessão ou permissão para prestação de serviços e
para exploração das infra-estruturas de transporte doméstico pelos meios
aquaviário e terrestre as empresas ou entidades constituídas sob as leis
brasileiras, com sede e administração no País, e que atendam aos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos
pela respectiva Agência. Art. 30. É permitida a transferência da
titularidade das outorgas de concessão ou permissão, preservando-se seu objeto e as condições contratuais, desde que o
novo titular atenda aos requisitos a que se refere o art. 29.” (grifos do
relator). Concluiu assim que os aludidos diplomas legais “preveem, para os postulantes a assumirem o controle da concessão, a
obrigatoriedade de atendimento de condicionantes técnicas, econômicas,
jurídicas e fiscais estabelecidas pela Agência, bem como o cumprimento das
cláusulas do contrato em vigor”. Na sequência, o relator ressaltou o
argumento aduzido pelos gestores ouvidos em audiência, no sentido de que “não há, nos dispositivos elencados, a
previsão de que as empresas candidatas atendam necessariamente aos mesmos
requisitos previstos no instrumento convocatório original da concessão”,
ponderando, no entanto, que, ao estabelecer as exigências para a transferência
da titularidade da concessão, “não pode a
Agência alegar discricionariedade para desviar-se das amarras previstas no
arcabouço normativo”, isso porque a legislação “dispõe expressamente a necessidade de licitação prévia à concessão
pública, com ferramentas para assegurar a publicidade dos atos e a participação
isonômica dos interessados (art. 14 da Lei 8.987/1995)”. Por conseguinte, “a transferência de titularidade da concessão
sem a observância mínima dos requisitos originais, ainda que mitigados de forma
fundamentada, pode se configurar como burla aos princípios da impessoalidade e
do julgamento objetivo”. Retomando o caso concreto, o relator pontuou que o
item 2.28 do Edital 7/2007, que deu origem ao contrato de concessão, previa a
necessidade de comprovação, pelos proponentes, de um patrimônio líquido (PL)
igual ou superior a R$ 81.852.500,00, a ser mantido durante a vigência
contratual, todavia, a nova empresa controladora, que passou a ter 99,99% das
ações da concessionária, possuía um PL de apenas R$ 10.000,00, correspondente a
tão somente 0,01% do mínimo exigido. Para o relator, não foram apresentadas
justificativas plausíveis pelos responsáveis para a desconsideração desse
requisito primário de habilitação financeira da empresa controladora na análise
que precedeu a transferência da concessão, mormente quando se constatava que a
então controladora “já vinha com baixo
nível de execução do PER, encontrando-se ainda o contrato antes da metade da
vigência, por ocasião do pleito de transferência”. O relator também chamou
a atenção para o fato de que a nova controladora tinha como atividades
econômicas a gestão empresarial e o comércio de equipamentos de informática,
desenvolvimento de programas de computador, suporte em informática, atividades
de intermediação e gerenciamento de serviços em geral, holding de instituições
não financeiras, correspondente de instituições financeiras, locação de
automóveis, transporte rodoviário de cargas, teleatendimento, cobranças e
representação comercial, ao passo que a outra empresa acionista tinha como
atividade econômica principal o aluguel de imóveis próprios. Portanto,
arrematou o relator, “atuavam em setores
sem qualquer correlação com a gestão de ativos de infraestrutura rodoviária”.
Sobre a análise realizada pelos técnicos da Superintendência de Exploração da
Infraestrutura Rodoviária-SUINF/ANTT, além da “irregularidade capital” de eles não terem assinalado a falta de
lastro financeiro da proponente, na forma de patrimônio líquido minimamente
compatível com a concessão, o relator frisou que as empresas proponentes
configuravam-se como “prestadoras de
serviços administrativos, possuindo registro de poucos funcionários em seus
quadros (entre 1 e 4)”, razão pela qual “a análise de aptidão financeira a partir do exame das demonstrações
financeiras, do cálculo de índices de endividamento etc., mostra-se totalmente
inadequada para o fim a que se propunha”. Em consequência, manifestou-se no
sentido de que a Nota Técnica 69/2018/GEREF/SUINF violara o disposto nos arts.
29 e 30 da Lei 10.233/2001, ao permitir que empresas que flagrantemente não
atendiam aos requisitos de qualificação econômica assumissem o controle da
concessão da BR-393/RJ, tendo o referido documento sido elemento essencial para
o julgamento pela Diretoria da ANTT, com a consequente consumação da
transferência irregular de controle acionário da concessionária. Acerca das
responsabilidades, por entender configurada a irregularidade dos signatários
daquela nota técnica, propôs a aplicação de multa individual, no valor de R$
30.000,00. Quanto ao responsável pela aprovação da Deliberação 820/2018,
particularmente pela “forma inoportuna
pela qual o processo de anuência à transferência de controle da concessionária
foi inserido em apreciação extrapauta na 784ª Reunião da Diretoria da ANTT, no
próprio dia da sessão (10/10/2018), além de ter designado relator ad hoc,
contrariando normativos da Agência, o que dificultou escrutínio mais
aprofundado do caso”, considerou cabível a aplicação de multa no montante
de R$ 50.000,00. Com relação ao autor do voto que aprovara a Deliberação 820/2018,
cujo resultado prático fora a transferência irregular de controle acionário da
concessionária, ante a falta de justificativa plausível, considerou cabível
aplicar-lhe multa no valor de R$ 50.000,00. Em acréscimo, face à gravidade da
sua conduta, sustentou que este último responsável deveria ficar inabilitado
para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da
Administração Pública, pelo prazo de cinco anos, com fundamento no art. 60 da
Lei 8.443/1992 (Lei Orgânica do TCU), no que foi inteiramente acompanhado pelos
demais ministros.
Acórdão
304/2024 Plenário, Representação, Relator Ministro Antonio Anastasia.