quinta-feira, 17 de julho de 2025

Na licitação que tem como critério de julgamento das propostas o maior desconto, é irregular a previsão, no edital, de desconto máximo

 

Na licitação que tem como critério de julgamento das propostas o maior desconto (art. 34, § 2º, da Lei 14.133/2021), é irregular a previsão, no edital, de desconto máximo a ser ofertado pelo licitante, por caracterizar preço mínimo, o que afronta o princípio da competitividade e o objetivo de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração.

Representação formulada ao TCU noticiou supostas irregularidades no Pregão Eletrônico 90.058/2024, promovido pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que teve como objeto a aquisição de materiais para manutenção predial, conforme condições, quantidades e exigências estabelecidas no edital e seus anexos. Com valor estimado de R$ 1.770.002,00, o certame fora dividido em dois lotes, sendo o primeiro avaliado em R$ 1.350.001,00 e o segundo com orçamento estimativo de R$ 420.001,00. Entre as irregularidades suscitadas, foi apontado que o edital de licitação limitara o desconto máximo que seria ofertado por licitante a 18,3% da tabela do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil do Rio de Janeiro (Sinapi/RJ), o que caracterizaria preço mínimo. Em exame preliminar, a unidade técnica destacou que: i) a jurisprudência do TCU orienta que a estipulação de desconto máximo sobre valores determinados em tabela equivale à fixação de preços mínimos, o que seria vedado pela legislação; ii) a fixação de preço mínimo em licitação pode restringir a competição e, consequentemente, comprometer o objetivo de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, o que violaria o art. 11, inciso I, da Lei 14.133/2021; iii) em consulta ao Portal de Compras do Governo Federal, “observa-se que, na prática, o prejuízo à competitividade do certame não se consumou, haja vista os licitantes terem ofertado praticamente os mesmos valores que foram estimados pela UFF”. Em juízo preliminar, o relator concordou que, de fato, a limitação do desconto máximo em 18,3% caracterizaria a prática de preço mínimo, infringindo o objetivo de gerar o resultado mais vantajoso para a Administração Pública, conforme o art. 11 da Lei 14.133/2021, e o princípio da competitividade, previsto no art. 5º da mesma lei. Discordou, no entanto, da unidade técnica quanto à inexistência de prejuízo à competitividade. Isso porque, a partir de consulta ao Portal de Compras, “verificou-se que os licitantes ofertaram os mesmos valores que foram estimados pela UFF, nos lotes 1 e 2, com descontos reais próximos de 0%”. Ele destacou que o desconto máximo permitido no pregão, em termos absolutos, fora de apenas R$ 0,19 para os dois lotes, reproduzindo disposições do termo de referência que evidenciavam essa limitação. E que, ao analisar os termos de homologação do certame, constatou que, além de a limitação do desconto máximo de 18,3% ter caracterizado preço mínimo, o desconto ofertado pelos licitantes “não incidiu sobre o valor estimado dos lotes 1 e 2, mas somente sobre uma única unidade monetária (R$ 1,00), o que fez com que as propostas classificadas para o lote 1 gravitassem somente entre R$ 1.350.000,817 e R$ 1.350.001,00. No entanto, em princípio, o desconto ofertado deveria incidir sobre todo o valor estimado. A título de exemplo, o desconto de 18,3% deveria resultar em contratação de R$ 1.116.450,83, e não de R$ 1.350,000,81, como se verificou”. Tal ocorrência, a seu ver, denotaria descumprimento do disposto no art. 34, § 2º, da Lei 14.133/2021, segundo o qual “o julgamento por maior desconto terá como referência o preço global fixado no edital de licitação”. Considerando haver fundamento para a expedição de medida cautelar, ele determinou a suspensão da execução dos contratos celebrados com as empresas vencedoras dos lotes 1 e 2, medida essa que foi referendada pelo Acórdão 315/2025-Plenário. Promoveu-se também a oitiva da UFF e das empresas contratadas, para que se manifestassem sobre as seguintes irregularidades: “a) previsão, no edital de licitação e no respectivo termo de referência, de desconto máximo a ser ofertado por cada licitante em 18,3% da tabela do Sinapi/RJ, o que caracterizaria preço mínimo, afrontando o princípio da competitividade e o objetivo de selecionar a proposta mais vantajosa para a administração; e b) não incidência do desconto ofertado pelas licitantes sobre o valor total da proposta, o que limitou o intervalo de disputa nos lotes 1 e 2 nos intervalos compreendidos entre R$ 1.350.000,817 e R$ 1.350.001,00 (lote 1) e R$ 420.000,817 e R$ 420.001,00, violando o disposto no art. 34, § 2º, da Lei 14.133/2021, que estipula que o critério de julgamento por maior desconto terá como referência o preço global fixado no edital de licitação”. Em resposta à oitiva, a UFF esclareceu que não houvera pagamento decorrente dos contratos celebrados, pois estavam suspensos em obediência à medida cautelar do TCU. Ademais, argumentou que o maior desconto sobre a tabela Sinapi não asseguraria, por si só, vantagem econômica à Administração, pois poderia representar risco de inexecução ou prática de “jogo de planilha”, em que o licitante baixa artificialmente os preços na licitação e busca compensações posteriores com superfaturamento de itens na fase contratual. Dessa forma, o estudo técnico preliminar e os documentos licitatórios teriam sido estruturados para mitigar essa “conduta oportunista”, estabelecendo desconto máximo aceitável com base em parâmetros de mercado e viabilidade de execução, a fim de garantir a “exequibilidade e sustentabilidade contratual, sem violar os preceitos da Lei 14.133/2021”. A UFF ainda ressaltou que a vantajosidade da contratação pública não se limita ao menor preço inicial, mas exige a consideração de custos indiretos e do ciclo de vida do objeto licitado, e que o critério de julgamento por menor preço, “embora permitido em diversas modalidades, nem sempre conduz à melhor contratação para a Administração, exigindo análise técnica rigorosa”. No caso do Pregão Eletrônico 90.058/2024, continuou a unidade jurisdicionada, todas as licitantes “aceitaram os termos do edital, tendo algumas posteriormente apresentado denúncias ao TCU sobre cláusulas previamente discutidas e afastadas em sede de recurso administrativo, o que revela tentativa de tumultuar a execução contratual”. Em seu pronunciamento de mérito, o relator, anuindo ao entendimento da unidade técnica, considerou que os argumentos da UFF, como a tentativa de evitar o “jogo de planilha” e a justificativa para limitar o desconto máximo, eram vagos e desprovidos de respaldo legal ou fático suficiente para afastar as irregularidades apontadas. Tais justificativas, reforçou o relator, não lograram afastar a ilegalidade da restrição imposta ao percentual de desconto, tampouco comprovaram sua compatibilidade com os princípios que regem as licitações. Ele observou que, no caso concreto, o desconto seria aplicado de forma uniforme sobre todos os itens de material constantes da Tabela Sinapi e demais tabelas de referência, em função da natureza do objeto licitado (aquisição de materiais para manutenção predial), razão por que o argumento de que a limitação de desconto buscava evitar o “jogo de planilha” não “se sustenta, uma vez que essa prática está associada à manipulação desigual de itens orçamentários, o que não se verifica quando há aplicação linear do desconto”. Além disso, a afirmação de que o menor dispêndio não se resumiria ao menor valor de proposta, embora correta, não elidiria, sob sua ótica, a irregularidade em discussão, pois o próprio edital do pregão não teria considerado custos indiretos, relacionados com as despesas de manutenção, utilização, reposição, depreciação e impacto ambiental do objeto licitado, entre outros fatores vinculados ao seu ciclo de vida. O relator enfatizou os riscos de dano ao erário causados pela limitação do desconto máximo e pela não incidência do desconto ofertado sobre o valor total das propostas, exemplificando que, no lote 1, houve desclassificação de licitante que ofertara desconto de 20% sobre a tabela Sinapi, embora tal desconto pudesse representar um patamar exequível, considerando a existência de “diversos fatores que fazem com que os valores dos insumos do referido sistema se apresentem, em geral, acima dos preços efetivamente transacionados no mercado”. Repisou o que já tinha constatado em sua manifestação preliminar, enfatizando que, além da limitação do desconto máximo, este não fora aplicado sobre o valor total estimado dos lotes, mas sim sobre uma unidade monetária fixa (R$ 1,00). Essa prática resultara em propostas com variações mínimas, como no lote 1, cujos valores oscilaram entre R$ 1.350.000,81 e R$ 1.350.001,00, quando um desconto de 18,3% deveria ter reduzido o valor final para R$ 1.116.450,83, o que demonstrava que o critério de julgamento utilizado distorcera o resultado da licitação. Destarte, concluiu ter havido afronta ao disposto no art. 34, § 2º, da Lei 14.133/2021, segundo o qual o julgamento pelo critério de maior desconto deve ter como referência o preço global do edital, bem como violação do princípio da competitividade e do objetivo de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. A UFF apontara, ainda, limitações sistêmicas na plataforma Compras.gov.br e no Siafi, justificando que a prática de calcular o desconto sobre uma unidade monetária fixa (R$ 1,00), em vez do valor total estimado, fora adotada como alternativa para evitar a redução do “poder de compra/empenho/valor do contrato”, o que poderia comprometer as demandas da Administração. O relator reconheceu a necessidade de ajustes na plataforma Compras.gov.br para permitir o processamento adequado de licitações pelo critério de maior desconto, destacando que, mesmo após mais de quatro anos da publicação da Lei 14.133/2021 e catorze desde o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), o sistema ainda não está adaptado. Ele criticou a ausência de melhorias, afirmando que isso obriga os gestores a recorrerem a soluções improvisadas, como o cálculo do desconto sobre R$ 1,00, prática que classificou como “uma espécie de gambiarra para operacionalizar o uso do instituto na plataforma Compras.gov.br. e, eventualmente, para burlar a disposição do art. 34, § 2º, da Lei 14.133/2021”. Apesar das impropriedades verificadas, o relator reconheceu que o julgamento pelo maior desconto oferece vantagens, como evitar o “jogo de planilha” e o “jogo de cronograma”, além de proporcionar celeridade e eficiência em licitações para objetos com demanda futura incerta. Contudo, ressaltou que o critério ainda exige refinamento procedimental e ajustes nos sistemas informatizados, razão por que julgou oportuno propor o envio de cópia da deliberação a ser proferida à Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos (CNLCA/AGU/CGU), para que ela avalie a possibilidade de aprimorar os modelos de minutas padronizadas de termos de referência e editais, incluindo a disposição de que, em licitações pelo maior desconto, o percentual ofertado deve incidir linearmente sobre cada item do orçamento estimado. Justificou o relator que, ao contrário do RDC, a Lei 14.133/2021 não traz comando claro sobre essa linearidade, e permitir descontos diferenciados por item desvirtuaria o critério de maior desconto, tornando-o semelhante ao de menor preço. Assim sendo, acolhendo as proposições do relator, o Plenário decidiu fixar prazo à UFF para anular o Pregão Eletrônico 90.058/2024, bem como os contratos dele decorrentes, sem prejuízo de cientificar a unidade jurisdicionada sobre as seguintes irregularidades, entre outras, identificadas no Pregão Eletrônico 90.058/2024: I) a “previsão no edital de desconto máximo a ser ofertado por licitante em 18,3% da tabela do Sinapi/RJ caracteriza preço mínimo, afrontando o princípio da competitividade e o objetivo de selecionar a proposta mais vantajosa para a administração”; II) “não incidência do desconto ofertado pelas licitantes sobre o valor total da proposta, o que limitou o intervalo de disputa nos lotes 1 e 2 nos intervalos compreendidos entre R$ 1.350.000,817 e R$ 1.350.001,00 (lote 1) e R$ 420.000,817 e R$ 420.001,00 (lote 2), violando o disposto no art. 34, § 2º, da Lei 14.133/2021, que estipula que o critério de julgamento por maior desconto terá como referência o preço global fixado no edital de licitação”. O Pleno também decidiu dar ciência do inteiro teor do acórdão proferido ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, visando à adoção de medidas para “adequar, com a urgência necessária, o Sistema Compras.gov.br ao critério de julgamento pelo maior desconto, a fim de evitar problemas semelhantes como os verificados nestes autos”. Outrossim, decidiu dar ciência da deliberação do Tribunal à Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos, para que “avalie a possibilidade de aprimorar a redação dos modelos de minutas padronizadas de termos de referência e editais regidos pela Lei 14.133/2021 com vistas a eliminar irregularidades como as que foram apuradas nestes autos”, além de incorporar, entre outras disposições, a seguinte: “nas licitações adjudicadas por lote/grupo ou preço global que adotem o critério de julgamento de maior desconto, o percentual de desconto oferecido pelo licitante, além de incidir sobre o preço global fixado, deve incidir linearmente sobre cada item de serviço do orçamento estimado”.

Acórdão 1354/2025 Plenário, Representação, Relator Ministro Benjamin Zymler.