É irregular a inabilitação de
licitante com base em interpretação restritiva de cláusula do edital, por
afrontar os princípios da vinculação ao instrumento convocatório e da
competitividade, bem como a busca pela proposta mais vantajosa para a
Administração Pública.
Representação
formulada ao TCU apontou possíveis irregularidades no RDC Eletrônico 539/2023,
promovido pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) com
vistas à construção da Ponte Internacional Rio Mamoré (Ponte Brasil-Bolívia). A
controvérsia central residiu na análise da habilitação técnico-operacional do
consórcio que ofertara a proposta de menor preço, tendo em vista que o edital
exigira dos licitantes a comprovação da execução de, ao menos, uma obra de
ponte ou viaduto com solução em extradorso ou estaiada, com extensão mínima de
seiscentos metros e vão livre igual ou superior a sessenta metros. Ainda que os
termos editalícios sinalizassem a necessidade de cumprimento dos requisitos por
meio de atestados individualizados, o subitem 4.1.4.3 do instrumento
convocatório, a seguir transcrito, expressamente autorizara o somatório de
atestados entre empresas consorciadas: “No caso de CONSÓRCIO será permitido
o somatório de 1 (um) atestado por empresa, os quais serão submetidos a uma
ponderação na contabilização das quantidades atestadas em função do percentual
de participação de cada empresa no consórcio, conforme equação constante no
Anexo I da Instrução Normativa nº 58/DNIT-SEDE, de 17 de setembro de 2021”.
Com base nessa autorização, o consórcio com proposta de menor preço apresentara
três Certidões de Acervo Técnico (CAT), a saber: a) CAT 238388/2021, referente
à reconstrução do vão central de ponte sobre o rio Moju/PA, do tipo estaiada,
com extensão total de 268 metros, composto por dois vãos de 134 metros; b) CAT
440345/2020, alusiva à construção de ponte sobre o rio São Francisco/SE, com
extensão total de 826 metros, com um vão de 91,5 metros, construído
parcialmente em estrutura metálica em forma de arco, com estais, e o restante
em concreto armado, com vigas pré-moldadas; e c) CAT 21801/2023, atinente à
construção da ponte sobre o rio Madeira/RO, com solução em vigas pré-moldadas e
balanços sucessivos, sem trecho estaiado, com extensão total de 1.517 metros. A
partir da leitura que fez do edital, no sentido da inexistência de autorização
para o somatório de atestados referentes a tecnologias construtivas distintas,
sendo possível somente a soma de atestados de obras que empregassem a solução
construtiva em extradorso ou estaiada, o Dnit assim examinara as CATs
apresentadas pelo consórcio, culminando na sua inabilitação: a) CAT
238355/2021: “atenderia apenas parcialmente os critérios definidos no edital,
pois não possui a extensão total mínima de 600 metros”; b) CAT 440345/2020:
“a ponte em arco atirantada não é classificada na literatura como estaiada,
e sua configuração é diferente da que se pretende construir, o que altera o
comportamento estrutural da construção”; e c) CAT 21801/2023: “o sistema
estrutural de vigas pré-moldadas, executadas pelo método balanço sucessivos, é
diferente da ponte exigida (estaiada) para fins de comprovação técnica”.
Por entender que o edital da licitação teria sido ambíguo e impreciso acerca da
“possibilidade da somatória de atestados de metodologias diferentes”, e
que, somados, “os atestados das obras executadas nos rios Moju e Madeira
demonstrariam a capacidade técnica da licitante”, o Tribunal decidira, por
meio do Acórdão
1775/2024-Plenário, determinar ao
Dnit a anulação do ato de inabilitação do consórcio e de todos os atos
posteriores, com o retorno do certame à fase de aceitação e julgamento das
propostas, de modo a permitir o somatório de atestados que comprovassem,
individualmente, a capacidade técnica nas tecnologias construtivas exigidas.
Irresignado com a deliberação do TCU, o consórcio que havia sido declarado
vencedor no RDC 539/2023 interpôs pedido de reexame. Ao apreciar a peça
recursal, o relator destacou, em seu voto, que a situação dizia respeito, na
verdade, a “conflito entre dois grupos de empresas privadas, na tutela de
interesses econômicos particulares”, e que a autarquia concluíra
tecnicamente pela necessidade da comprovação de experiência prévia em obra que
atendesse, cumulativamente, aos seguintes requisitos: “extensão da ponte ou
viaduto de ao menos 600m e vão livre de ao menos 60m e solução (extradorso ou
estaiada)”. Considerando não haver dubiedade nas disposições editalícias
quanto à proibição de soma de atestados, e não tendo o consórcio autor da
representação no TCU apresentado atestado de capacidade técnica que comprovasse
o atendimento aos requisitos constantes do instrumento convocatório, o relator
reputou correta a decisão de inabilitação adotada pelo Dnit, propondo ao colegiado
o provimento do pedido de reexame para, reformando o acórdão recorrido, julgar
improcedente a representação. Divergindo do relator, um dos ministros revisores
sustentou que o Dnit conferira interpretação excessivamente rigorosa e
restritiva aos termos do edital, ao inferir que não havia previsão para o
somatório de atestados referentes a tecnologias construtivas distintas. De
acordo com esse revisor, era fundamental perceber que a ponte sobre o Rio
Mamoré deveria ser executada com duas metodologias distintas, isto é, em seu
vão central, de 120 metros de comprimento, a estrutura seria do tipo extradorso
ou estaiada, ao passo que nos trechos remanescentes, com cerca de 1.100 metros,
seria adotada solução convencional, com vigas pré-moldadas. Nesse contexto, e à
luz da literalidade do edital, a interpretação mais razoável seria “aquela
que admite, para fins de comprovação da capacidade técnica do licitante, a
experiência prévia com a construção de pontes com ambas as tecnologias, cujas
extensões e métodos construtivos sejam compatíveis com as exigências do certame”
(negritos do relator). Destarte, seria possível, a seu ver, a aceitação de
atestados separados para cada tipo de solução prevista, ou seja, “uma, mais
complexa (estaiada); outra, mais extensa (vigas pré-moldadas)”. Nessa
hipótese, prosseguiu o aludido revisor, o simples somatório do atestado
referente à ponte sobre o Rio Moju/PA com qualquer um dos dois outros atestados
apresentados mostrar-se-ia “suficiente para atender ao critério técnico-operacional
e, assim, habilitar a proposta de menor preço”. Na sequência, ele chamou a
atenção para o entendimento consolidado do TCU no sentido de que a vedação ao
somatório de atestados técnicos deve ser medida excepcional, adotada apenas
quando a complexidade do objeto assim o exigir e desde que não comprometa a
competitividade, sob pena de infringir os princípios que norteiam o processo
licitatório, a exemplo dos Acórdãos 2605/2016 e 134/2017, ambos do Plenário, e 6219/2016-2ª
Câmara. A corroborar sua assertiva,
julgou oportuno transcrever o entendimento consubstanciado no Acórdão
7105/2014-2ª Câmara: “A vedação ao
somatório de atestados, para o fim de comprovação da capacidade
técnico-operacional, deve estar restrita somente aos casos em que o aumento de
quantitativos acarretarem, incontestavelmente, o aumento da complexidade
técnica do objeto ou uma desproporção entre quantidades e prazos de execução,
capazes de exigir maior capacidade operativa e gerencial da licitante e ensejar
potencial comprometimento da qualidade ou da finalidade almejadas na
contratação, devendo a restrição ser justificada técnica e detalhadamente no
respectivo processo administrativo”. Após ressaltar que o consórcio que
havia sido inabilitado pelo Dnit apresentara proposta com valor cerca de R$ 5
milhões inferior ao ofertado pelo então segundo colocado, posteriormente
declarado vencedor na disputa, o referido revisor fez questão de enfatizar que
o entendimento por ele defendido não implicaria, de forma alguma, modificação
das exigências editalícias, uma vez que, no caso em tela, não se tratava de
alterar o instrumento convocatório, mas sim de garantir-lhe interpretação “conforme
à lei, à jurisprudência do TCU, aos próprios termos do edital e ainda
condizente com as características da obra a ser executada”. Em outras
palavras, “assegurar que a interpretação das regras editalícias, que
certamente pautou o comportamento de todos os interessados no certame,
prevaleça”. Ao final, o relator propôs, e o Plenário decidiu, negar
provimento ao pedido de reexame, mantendo-se o Acórdão 1775/2024-Plenário em seus exatos termos.
Acórdão
1466/2025 Plenário, Pedido de Reexame, Revisor Ministro Jorge Oliveira.