Não é cabível a aplicação da sanção
de declaração de inidoneidade a empresa que pratica irregularidade no âmbito
de procedimento de manifestação de interesse (PMI), regulamentado pelo Decreto
8.428/2015. Esse procedimento, apesar de possuir semelhanças com a fase
interna de uma licitação, não se confunde com o certame que poderá vir a
sucedê-lo, razão pela qual não é possível valer-se de interpretação extensiva
para aplicação da sanção prevista no art. 46 da Lei 8.443/1992.
Representação
formulada por unidade técnica do TCU, a partir de documentos compartilhados
pela Polícia Federal, apontou possível irregularidade no Procedimento de
Manifestação de Interesse (PMI) 11/2015, realizado pelo Ministério dos
Transportes, Portos e Aviação Civil (MTPA) com vistas à apresentação de estudos
de viabilidade técnica a fim de subsidiar a concessão pública das rodovias
BR-101/290/386/448/RS, denominadas de Rodovias de Integração do Sul. A
representante noticiou que a empresa autorizada pelo Ministério a elaborar
aqueles estudos teria praticado atos com o fito de obter vantagem competitiva
sobre os demais concorrentes, quando do futuro procedimento licitatório da
concessão. Havia evidências de que a empresa teria manipulado indevidamente os
estudos objeto do PMI 11/2015, apresentados ao MTPA, a exemplo da formulação de
soluções de engenharia superiores às efetivamente necessárias, fixação de
critérios e parâmetros concernentes aos estudos de tráfego desfavoráveis e
manipulação de dados de cadastro de pavimento, bem como na superestimava da
necessidade de manutenção. Tudo isso levaria à majoração dos custos e
investimentos a serem dispendidos nas rodovias ao longo do período de
concessão. Considerando que os atos investigados poderiam configurar fraude à
licitação, propensos a ensejar a penalidade de declaração de inidoneidade
prevista no art. 46 da Lei 8.443/1992, a unidade técnica, autorizada pelo
relator, promoveu a audiência da empresa que realizou os estudos. Ao apreciar
as razões de justificativa oferecidas, o relator destacou, preliminarmente, que
os atos praticados revelavam sim a intenção da empresa de se beneficiar
futuramente da licitação, pois, ao manipular diversos critérios de entrada para
valoração do negócio, como as condições atuais do pavimento e o volume de
tráfego, ou a inclusão de itens cuja previsão estava superavaliada, tinha ela
conhecimento de que, na execução do contrato, poderia efetuar intervenções
menos robustas, ou mesmo apresentar proposta mais fidedigna às reais condições
da rodovia e dos serviços que seriam necessários após a celebração do contrato.
Segundo o relator, verificou-se que, de fato, “os estudos de viabilidade se
basearam em dados alterados, quais sejam, o de volume de tráfego e de dados
cadastrais do pavimento”. Ele também pontuou que esses dados não foram
alterados por erro, mas sim com a intenção de obter vantagem em futura
licitação, e que a intenção fora evidenciada “pelas correspondências
eletrônicas dos funcionários da empresa”. Salientou não vislumbrar “outra
interpretação desses registros senão a manipulação intencional dos estudos”
pela empresa. E arrematou: “Ainda que se considere que o estudo de
viabilidade é um elemento preliminar de projeto, com nível de detalhamento
muito inferior ao projeto básico e, por isso, sujeito a diversas alterações e
revisões, os registros apontados não se enquadram nesse contexto”. Não
obstante concluir pela manipulação dos estudos, no que concerne à possibilidade
de aplicar a sanção de declaração de inidoneidade à empresa, anuiu às
conclusões externadas pelo representante do Ministério Público junto ao TCU
(MPTCU), instado a se manifestar nos autos. O relator enfatizou que o MPTCU, em
seu parecer, asseverara que, apesar de objetivos assemelhados, “os atributos
da publicidade do chamamento público de estudos e da inerente participação de
terceiros externos à Administração no âmbito do PMI se mostram incompatíveis
com a fase interna de uma licitação, a qual deve processar-se exclusivamente no
âmbito do Poder Público”. Assinalou também que o MPTCU, ao invocar o
Decreto 8.428/2015, o qual regulamenta o procedimento de manifestação de
interesse, deixara assente que essa norma caracteriza o PMI como “procedimento
próprio, autônomo, desvinculado da licitação que sobrevirá, sendo realizado,
como visto acima, mediante processo de chamamento público”, não se
confundindo com o certame da concessão, haja vista possuírem “objeto,
obrigações, vigência e regulamentação próprios”. E que, apesar das
semelhanças do PMI com a fase interna da licitação, o MPTCU defendera “não
ser adequado utilizar-se de analogia para aplicar o art. 46 da Lei 8.443/1992,
promovendo interpretação extensiva para fins de aplicação de sanção”.
Assim, de acordo com o MPTCU, “apesar de algumas semelhanças, existem
peculiaridades que impedem a equiparação do PMI a um procedimento licitatório”
e “por certo que os princípios e preceitos gerais da Lei 8.666/93 devem
incidir no instituto, porém, para fins da aplicação de sanções, a
interpretação das normas deve sempre seguir outro caminho, cabendo ponderar as
muitas diferenças entre o PMI e as licitações e contratos em geral” (destaque
no original). Destarte, o MPTCU concluira que o PMI não configura procedimento
licitatório, nem mesmo lato sensu, e que “as diferenças existentes em
relação a um procedimento licitatório propriamente dito fazem com que os
resultados de eventual ação fraudulenta sejam significativamente diversos dos
que seriam obtidos em uma licitação”. O relator entendeu assistir inteira
razão ao Parquet especializado, isso porque o PMI “é conduzido por
meio de procedimento completamente autônomo da licitação que o sucederá.
Trata-se de autorização precária, que não gera exclusividade, direito de
preferência, obrigação de realização de licitação ou mesmo direito ao
ressarcimento dos valores despendidos”. Chamou também a atenção, em seu
voto, para o fato de que a Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos) veio a caracterizar o PMI como procedimento auxiliar das
licitações e manteve o caráter precário desse instrumento. E que a
Administração “tem a possibilidade de previamente ao ressarcimento analisar
os dados e estudos realizados, o que foi feito no caso concreto, e fazer o
juízo próprio de conveniência, oportunidade e adequação de sua utilização em um
futuro certame”. Na sequência, frisou que, em que pese concordar ter havido
manipulação dos dados e estudos, o fato é que a Administração adotou as
cautelas necessárias, de modo que não houve repercussões na concessão que foi
levada a efeito. Por derradeiro, realçou que a Lei 14.133/2021 tipifica o crime
de “omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento
cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em
frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da
proposta mais vantajosa para a Administração Pública” em procedimento de
manifestação de interesse (art. 337-O do Decreto-lei 2.848/1940) de forma
distinta das tipificações alusivas à fraude a licitação (arts. 337-F, 337-I e
337-L do Decreto-lei 2.848/1940), o que, a seu ver, corrobora essa distinção
entre o PMI, como procedimento auxiliar, e a licitação propriamente dita. Assim
sendo, acolhendo a manifestação do MPTCU, o relator propôs e o colegiado
decidiu que não era aplicável ao caso a imputação da penalidade prevista no
art. 46 da Lei 8.443/1992, sem prejuízo de dar ciência do acórdão proferido ao
departamento de Polícia Federal, à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Geral
da República.
Acórdão
2613/2022 Plenário, Representação, Relator Ministro Bruno Dantas.