PERDA DO PRAZO DE RAZÕES RECURSAIS NA LICITAÇÃO NÃO GERA PENALIDADE
CONSULTOR JURÍDICO:
Endereço da matéria: https://www.conjur.com.br/2024-mai-03/perda-do-prazo-de-razoes-recursais-na-licitacao-nao-gera-penalidade/
A
Lei nº 14.133/21, que dispõe sobre Licitações e Contratos Administrativos, não
autoriza sanção a licitante que perdeu prazo para envio das razões de recurso
administrativo.
Ponto de partida da discussão
Em
determinado edital de licitação, pelo regime da “nova lei”, foi identificada a
seguinte regra:
“Desde já, fica consignado, em
função da desnecessidade de fundamentar a intenção de recurso, que em caso de
registrar intenção e deixar de interpor a peça recursal ou interpor recurso com
caráter com objetivo meramente PROTELATÓRIO, ficará o licitante que der causa a
estes fatos, sujeito à multa de 10% (dez por cento) do valor estimado dos itens
em que estiver participando.”
Tal
disposição, máxima vênia, revela evidente incompatibilidade com a legislação.
Considerações sobre a desnecessidade de motivação da intenção recursal
Cabe
esclarecer que, se ao contrário do antigo regime licitatório, o artigo 165, §
1º, inciso I, da Lei nº 14.133/21 não exige indicação de motivação para a
intenção de recurso, isso não implica em transmudar a regra para a
interpretação forçada a criar tipicidade de conduta infracional na licitação
pelo não envio das razões de recurso.
A
supressão da motivação decorreu da constatação de que licitantes, na pressa do
certame em andamento, em curto prazo de 15 a 30 minutos, não conseguiam
identificar da proposta e dos documentos de habilitação dos seus concorrentes
todas as possíveis falhas, uma limitação ao apontamento de tudo o que poderia
ser tratado nas razões de recurso.
A
motivação na intenção de recurso tinha feições de forçada análise de todo um
conjunto de documentos processuais em poucos minutos, restringindo o pleno
exercício do direito recursal, razão pela qual a regra foi “exterminada” e não
importada para a nova lei.
Considerações sobre a matéria central em análise
Direito
sancionatório é restritivo, sendo importante lembrar que o Superior Tribunal de
Justiça já decidiu que a falta de resposta a solicitações de documentos em
licitações, mesmo que por 24 horas, não gera penalidades.
A
consequência, no caso, seria a desclassificação da proposta ou a inabilitação
do licitante (STJ — RMS nº 23.088/PR, relator Ministro Francisco Falcão, 1ª
Turma, julgado em 19/4/2007, DJ de 24/5/2007, p. 310).
E
quando o Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 754/2015 — Plenário,
entendeu que se deveria instaurar processos para apurar condutas de licitantes
por abandono de propostas em pregões, o caso tratava de centenas de itens,
envolvendo um grupo de
licitantes agindo
de forma interligada. Por isso, nem o TCU afirmou que perda de faculdade
processual em caso isolado teria consequência jurídica além da desclassificação
de proposta ou da inabilitação de licitante.
Enfim,
muitas empresas foram ilicitamente sancionadas pelo não envio de documentos,
por não praticarem um ato processual, enquanto o STJ alertava que o artigo 7º
da Lei nº 10.520/2002, então lei de pregão, não poderia ser assim interpretado,
com presunção de conduta ilícita, vez que a perda de faculdade processual teria
sua respectiva consequência, não penalidade de modo automático.
E
para que não pairem interpretações forçadas, nem o artigo 155, inciso IV, da
Lei nº 14.133/21 pode ser objeto de confusão quanto ao termo: “deixar de entregar a documentação exigida para
o certame”. Isso porque esse trecho da nova lei adveio do artigo 7º da
antiga Lei nº 10.520/2002, que já passou pelo crivo do STJ, portanto, em face
da segurança jurídica, da coerência de decisões e da visão de continuidade
típico normativa, interpretação do STJ sobre conduta que passa da lei antiga
para a nova, deve-se considerar o entendimento daquele Tribunal, ao qual
compete uniformizar jurisprudência sobre texto de lei federal (artigo 105, inciso
II, alíneas “a” e “c”, da Constituição).
Assim,
considerando que a “ratio decidendi” ou
o “racional” adotado pelo STJ
será o mesmo, pois a base do texto da nova legislação continua sendo a mesma
ideia da antiga, “deixar de entregar a
documentação” não será infração administrativa, como deixar de
responder mensagens dentro de sistema também não será, como também deixar de
apresentar razões de recurso não será.
São
aspectos processuais de consequências simples:
1)
não envio de documentação implica em desclassificação de proposta ou em
inabilitação de licitante, do mesmo modo que não atender à solicitação de
informação ou documento dentro de diligência implica nessas consequências e
curso do certame para a próxima proposta; e
2)
manifestar a intenção de recurso, mas perder prazo para apresentação das razões
recursais não implica em penalidade, mas sim na consequência legal de “trânsito em julgado”, fechando a matéria
que poderia ter sido eventualmente discutida e abrindo espaço para o
prosseguimento da licitação.
Edital
não pode tipificar conduta de modo forçado, até porque, além de não ser o
agente público o legislador, sob pena de usurpar a competência do Congresso
(artigos 22, inciso XXVII, e 44, ambos da Constituição) basta notar que a
matéria de sanções está em uma parte diferente na estrutura sistemática da Lei
nº 14.133/21, sendo claro que onde há o regramento de desclassificação de
proposta ou inabilitação de licitante não há expressa norma no sentido de que
todo aquele que incorrer nessas situações será penalizado.
Feitas
tais considerações, cabe comparar o cenário administrativo com o judicial, no
qual embora haja especificidade de honorários em recurso (remuneração do
advogado da parte contrária), no que importa para compactar, uma multa por litigância
de má-fé vem apenas em casos pontuais, como de pode ter em exemplo de recurso
ao STJ contra súmula dele próprio, o que poderia implicar no rótulo de recurso
manifestamente improcedente e protelatório. Mas a mera perda do prazo de
recurso não gera sumária aplicação de multa.
Os
juízes não se dedicam a multar a parte que perde prazo para interpor algum
recurso, porque isso, simplesmente, leva ao “trânsito
em julgado” de certa matéria no processo.
E
mesmo que o dever de colaborar com o bom andamento do processo, com atuação de
boa-fé, na cooperação para decisão em tempo razoável (celeridade) sejam
princípios, respectivamente, dos artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil, o
magistrado que conduz o processo não tem base legal para multar a parte, simplesmente,
pela “perda do prazo de recurso”.
Conclusões
É
preciso ter visão além do alcance e considerar a legislação de forma sistêmica,
para se evitar forçada interpretação baseada em captura de pontos isolados do
texto da lei e a criação de regras sancionatórias dentro de um edital de
licitação.
é advogado, sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia, ex-assessor da
Presidência da República, especialista em Direito Público pelo IDP e Compliance
Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e autor de cinco livros, incluindo
"Licitação Pública Internacional no Brasil".